quarta-feira, 19 de abril de 2017

CONTANDO A VIDA 186

A BONECA EMÍLIA E A LAVA-JATO.

José Carlos Sebe Bom Meihy

Para Marisa Lajolo, em abril, como sempre.

É abril e não há de como deixar de falar de Lobato. Desta feita, de Lobato e da boneca Emília, “sua mais completa tradução”... Passados mais de 80 anos da invenção da personagem que, gradativamente, integra nossa moderna mitologia, vale reestabelecer seu DNA, isto é, ver suas origens e reinventá-la à luz dos dias atuais, em particular desse tenebroso tempo da Lava-Jato e d’outras desgraças que contaminam o humor político brasileiro. Seria possível desvelar as origens da boneca, acompanhar sua evolução ou crescimento como “gente”? O que diria hoje aquele inquieto ser feito de pano, com olhos de botões costurados com retrós? Cabe tal devaneio, ou devo estar sob o efeito do pó-de-pirlimpimpim? Sei lá, de toda forma, vou começar a viagem que, afinal, espero me leve a algum lugar explicativo deste nosso presente infeliz.

É verdade que o próprio Lobato cuidou de deixar rastros sobre suas criações. As cartas ao amigo Rangel, juntadas às centenas de entrevistas, por exemplo, fornecem atalhos prometedores. Além disso, não são poucos os curiosos que buscam as raízes emilianas para além do Paraíso Terrestre, ou melhor, do Sítio do Pica Pau Amarelo... Com sensibilidade aflorada, aliás, uma autora cearense, Socorro Acioli, ousou retraçar a trajetória da boneca de pano, e escreveu um livro precioso para quantos não deixam de se inquietar com a evolução da Emília “Emília: uma biografia não-autorizada da Marquesa de Rabicó” (Casa da Palavra, Rio de Janeiro, 2014). Por meio de leitura atraente, a autora reacende o debate sobre as mudanças da sempre insatisfeita boneca, mas a meta é mostrá-la mais popular, engraçada e, por contraste, menos venenosa e politizada. Claro: ela não perdeu o tom irônico, ou irreverente, mas mudou o comprometimento social.

É verdade que tudo na criação lobateana interessa, mas muito vale lembrar que a própria boneca cuidou de nos deixar suas “Memórias da Emília”. Caso me fosse perguntado o que mais me chama a atenção nessas “Memórias”, não teria dúvida em responder: é a definição da imagem pública deixada para a posteridade, vejamos:

Bem sei que tudo na vida não passa de mentiras, e sei também que é nas memórias que os homens mentem mais. Quem escreve memórias arruma as coisas de jeito que leitor fique fazendo uma alta ideia do escevedor. Mas para isto ele não pode dizer a verdade, porque senão o leitor fica vendo que era um homem igual aos outros. Logo, tem de mentir com muita manha, para dar ideia de que está falando a verdade pura.
A simples leitura desse enunciado, num arco histórico, convida à transposição para o caso da atualíssima Lava-jato. Basta uma olhada nas retomadas biográficas que nossos parlamentares usam em defesa própria: “é tudo mentira”, “sou inocente”, “quem acompanha minha trajetória tem conhecimento de quem sou”... Relacionando as coisas, há algo que me inquieta na vida pública de Lobato/Emília. A boneca no começo era muito mais maquiavélica, ousada, até inconveniente. Mas, mudou. Deixe-me explicar melhor: aos poucos, nas edições sequentes, há uma variação no tratamento da boneca com seu público. Crescendo, ela vai ficando cada vez mais engraçada, mas, apenas mais engraçada. De maneira sutil, o teor político inaugural é trocado por troças pândegas. Veja-se, por exemplo, a explicação que ela dá ao Anjinho caído do céu, quando resolveu explicar o termo “discurso”, referindo-se aos parlamentares:
- que é discurso?
- é uma falação em voz alta, de pé, na tribuna, diante de uma porção de ouvintes. Existe uma casa chamada Congresso, onde uns fabricantes de discursos, chamados deputados e senadores são pagos para falar. Lá dentro tudo é nobre. Só se ouve: “O nobre deputado... O nobre senador...” Mas quando brigam, a nobreza fica das mais engraçadas porque só se ouvem coisas assim: “O nobre deputado é um ladrão” ou o “O nobre senador é um canalha!”
- chegam até esse ponto? Exclamou o anjinho assustado.
- se chegam! Não há ponto onde o homem não chegue. Eu leio sempre os jornais e me arregalo com o que se passa no mundo. Que bagunça Anjinho!
- quem dirige os homens na terra?
- eles mesmos. Os mais fortes, ou mais espertos governam os mais fracos, ou mais bobos. Os espertos estão sempre de cima: e os mais bobos, sempre debaixo. Mas como os expertos abusam demais, muitas vezes os bobos que são em maior número, desesperam e fazem revoluções, botando abaixo os expertos.
- que é revolução?
- é isso. É uma grande multidão de bobos botando abaixo os expertos. Uma espécie de mudanças de moscas. Você já viu como em redor de certas coisas se juntam moscas? Pois é assim. Quando as moscas que estão de fora – as bobas – ficam muitas magras, elas se juntam e fazem uma revolução, isto é, é, espantam as gordas e tomam seu lugar. Mas imediatamente entre as bobas surgem as expertas, que vão fazendo o parigato e botando as fora as bobas, para ficarem sozinhas no gostoso.

Mas, o que isso tem a ver com a questão da Lava-jato? Tudo. Tem tudo a ver, pois não apenas nos faz pensar na perenidade da corrupção política nacional, nos jargões de tratamento jurídicos que encobrem falcatruas, na imagem que congressistas têm do povo, mas sobretudo permite pensar no apagamento de determinadas práticas discursivas que poderiam sim instruir leitores – mirins ou adultos – a temas penetrantes. Por que será que Lobato retirou essa passagem tão fértil das demais edições? Será que ele a manteria hoje, frente a Lava-jato? Ou será que também se deixou corromper pelo sucesso público de seu personagem que, aos poucos, foi se tornando mais de acordo com os consumidores, mais dóceis e apenas mais interessantes? 

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