A
BONECA EMÍLIA E A LAVA-JATO.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Para Marisa Lajolo, em abril, como sempre.
É abril e não há de como deixar de falar de Lobato. Desta feita, de
Lobato e da boneca Emília, “sua mais completa tradução”... Passados mais de 80
anos da invenção da personagem que, gradativamente, integra nossa moderna mitologia,
vale reestabelecer seu DNA, isto é, ver suas origens e reinventá-la à luz dos
dias atuais, em particular desse tenebroso tempo da Lava-Jato e d’outras
desgraças que contaminam o humor político brasileiro. Seria possível desvelar
as origens da boneca, acompanhar sua evolução ou crescimento como “gente”? O
que diria hoje aquele inquieto ser feito de pano, com olhos de botões
costurados com retrós? Cabe tal devaneio, ou devo estar sob o efeito do pó-de-pirlimpimpim? Sei lá, de toda
forma, vou começar a viagem que, afinal, espero me leve a algum lugar
explicativo deste nosso presente infeliz.
É verdade que o próprio Lobato cuidou de deixar rastros sobre suas
criações. As cartas ao amigo Rangel, juntadas às centenas de entrevistas, por
exemplo, fornecem atalhos prometedores. Além disso, não são poucos os curiosos que
buscam as raízes emilianas para além
do Paraíso Terrestre, ou melhor, do Sítio do Pica Pau Amarelo... Com
sensibilidade aflorada, aliás, uma autora cearense, Socorro Acioli, ousou
retraçar a trajetória da boneca de pano, e escreveu um livro precioso para
quantos não deixam de se inquietar com a evolução da Emília “Emília: uma biografia não-autorizada da
Marquesa de Rabicó” (Casa da Palavra, Rio de Janeiro, 2014). Por meio de
leitura atraente, a autora reacende o debate sobre as mudanças da sempre
insatisfeita boneca, mas a meta é mostrá-la mais popular, engraçada e, por
contraste, menos venenosa e politizada. Claro: ela não perdeu o tom irônico, ou
irreverente, mas mudou o comprometimento social.
É verdade que tudo na criação lobateana interessa, mas muito vale lembrar
que a própria boneca cuidou de nos deixar suas “Memórias da Emília”. Caso me fosse perguntado o que mais me chama a
atenção nessas “Memórias”, não teria
dúvida em responder: é a definição da imagem pública deixada para a posteridade,
vejamos:
Bem sei que tudo
na vida não passa de mentiras, e sei também que é nas memórias que os homens
mentem mais. Quem escreve memórias arruma as coisas de jeito que leitor fique
fazendo uma alta ideia do escevedor. Mas para isto ele não pode dizer a
verdade, porque senão o leitor fica vendo que era um homem igual aos outros.
Logo, tem de mentir com muita manha, para dar ideia de que está falando a
verdade pura.
A simples leitura
desse enunciado, num arco histórico, convida à transposição para o caso da atualíssima
Lava-jato. Basta uma olhada nas retomadas biográficas que nossos parlamentares
usam em defesa própria: “é tudo mentira”,
“sou inocente”, “quem acompanha minha trajetória tem conhecimento de quem sou”... Relacionando
as coisas, há algo que me inquieta na vida pública de Lobato/Emília. A boneca
no começo era muito mais maquiavélica, ousada, até inconveniente. Mas, mudou.
Deixe-me explicar melhor: aos poucos, nas edições sequentes, há uma variação no
tratamento da boneca com seu público. Crescendo, ela vai ficando cada vez mais
engraçada, mas, apenas mais engraçada. De maneira sutil, o teor político
inaugural é trocado por troças pândegas. Veja-se, por exemplo, a explicação que
ela dá ao Anjinho caído do céu, quando resolveu explicar o termo “discurso”,
referindo-se aos parlamentares:
- que é discurso?
- é uma falação
em voz alta, de pé, na tribuna, diante de uma porção de ouvintes. Existe uma
casa chamada Congresso, onde uns fabricantes de discursos, chamados deputados e
senadores são pagos para falar. Lá dentro tudo é nobre. Só se ouve: “O nobre
deputado... O nobre senador...” Mas quando brigam, a nobreza fica das mais
engraçadas porque só se ouvem coisas assim: “O nobre deputado é um ladrão” ou o
“O nobre senador é um canalha!”
- chegam até esse
ponto? Exclamou o anjinho assustado.
- se chegam! Não
há ponto onde o homem não chegue. Eu leio sempre os jornais e me arregalo com o
que se passa no mundo. Que bagunça Anjinho!
- quem dirige os
homens na terra?
- eles mesmos. Os
mais fortes, ou mais espertos governam os mais fracos, ou mais bobos. Os
espertos estão sempre de cima: e os mais bobos, sempre debaixo. Mas como os
expertos abusam demais, muitas vezes os bobos que são em maior número,
desesperam e fazem revoluções, botando abaixo os expertos.
- que é
revolução?
- é isso. É uma
grande multidão de bobos botando abaixo os expertos. Uma espécie de mudanças de
moscas. Você já viu como em redor de certas coisas se juntam moscas? Pois é
assim. Quando as moscas que estão de fora – as bobas – ficam muitas magras,
elas se juntam e fazem uma revolução, isto é, é, espantam as gordas e tomam seu
lugar. Mas imediatamente entre as bobas surgem as expertas, que vão fazendo o
parigato e botando as fora as bobas, para ficarem sozinhas no gostoso.
Mas, o que isso
tem a ver com a questão da Lava-jato? Tudo. Tem tudo a ver, pois não apenas nos
faz pensar na perenidade da corrupção política nacional, nos jargões de
tratamento jurídicos que encobrem falcatruas, na imagem que congressistas têm
do povo, mas sobretudo permite pensar no apagamento de determinadas práticas
discursivas que poderiam sim instruir leitores – mirins ou adultos – a temas
penetrantes. Por que será que Lobato retirou essa passagem tão fértil das
demais edições? Será que ele a manteria hoje, frente a Lava-jato? Ou será que
também se deixou corromper pelo sucesso público de seu personagem que, aos
poucos, foi se tornando mais de acordo com os consumidores, mais dóceis e
apenas mais interessantes?
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