A ROMARIA DAS “ROMARIAS”
José Carlos Sebe Bom Meihy
Definitivamente, o tema tomou conta de mim. Bastou pensar em uma
sondagem para que o campo de pesquisa se tornasse desafio. E eis-me estudando
Aparecida do Norte. A complexidade do assunto, porém, obriga a amplitudes e
assim a primeira atitude de alargamento da proposta. Na realidade, a prática das
romarias é comum no mundo. Algumas são famosas e guardam prestígio
transparecidos em relatos de milagres, graças e pagamento de promessas. No
circuito cristão católico, entre tantas, a ida a Roma é cultuada como matriz
significativa, presente inclusive em outras religiões, mundo afora. Aparecida do Norte, assim, sugere o uso da peregrinação
como ato devoto a ser vivenciado por fieis que reciclam rituais derivados de
uma afetuosa memória coletiva.
O caso brasileiro, contudo, apresenta variante que interessa pela
originalidade: além dos roteiros de visitas, a produção musical se oferece como
espécie de discurso épico continuado, cumulativo, dirigido principalmente, para
o público de perfil urbano ou em processo de adaptação ao meio citadino. É
exatamente neste sentido que a música sertaneja atua como ativadora de
pertencimento popular. Ainda que a tradição romeira tivesse perdido o
fundamento eminentemente religioso, alguns referenciais, além do culto à Imagem
Milagrosa, ficam expostos: a eleição de um tempo central para o pagamento de
promessas, a passagem pela capela onde está guardada a santa e referência às
músicas que se desdobram fora dos limites das visitas. Tais fatores compõem
lances que permitem supor discursos musicais que fomentam uma lógica devota
especial. Submetidas a uma linha do tempo, tais canções formulam a continuidade
de uma memória que é mais do que mera propaganda, sendo mesmo um chão que
justifica o caminho cultural da devoção profana.
O exame das letras sobre as Romarias como fenômeno não religioso,
referentes ao caso do Município de Aparecida do Norte, indica a vivência da fé
segundo a tradição de inspiração religiosa popular.
Trata-se sim, legitimamente, de fé, mas longe de ortodoxias. Não se mostra
prudente, contudo, confundir tal procedimento com catolicismo popular,
como se houvesse níveis de vivência cristã. Por certo, a
popularização dos meios de transporte faz repontar disputas entre a memória
de uma cavalaria – onde o fiel cumpriria a promessa vindo montado a
cavalo – em favor de movimentações também feitas a pé, de carro, em caminhões
ou ônibus. A repetição de alguns motes como a visita à imagem causadora desse
culto de fé, Aparecida do Norte, no estado de São Paulo, serve de base para se
pensar na formulação do mito de uma cidade sagrada onde se reciclam tradições
de supostos traços medievais. Aliam-se assim dois fatores complementares: a
imagem da Senhora Aparecida e a constituição de uma “capital da fé”, espécie de
referência obrigatória para a homenagem à Padroeira do Brasil.
Mas, em que medida pode-se propor, pelo exame desse cancioneiro
modernizado, a construção de uma memória coletiva capaz de justificar a
hipótese de trabalho em favor de uma moderna tradição cultural? A resposta se
desdobra do suposto que permite ver a formulação de matrizes narrativas que se
repetem, variando a exemplificação, mas garantindo o mesmo sentido. Assim,
algumas peripécias ou detalhes de façanhas romeiras podem ser encontrados nas
letras das centenas de canções, notadamente de duplas sertanejas mais
populares. A que inaugura essa sequência, Aparecida do Norte, foi
composta por Anacleto Rosas Jr e Tonico, da dupla Tonico e Tinoco. Cabe lembrar
que no ano dessa parceria, 1958, deram-se algumas das mais importantes
transformações ligadas à modernização do Brasil. No andamento dos chamados
“anos dourados” (1956 - 1961), na trajetória política de gestão de Juscelino
Kubitschek, arrolaram-se fatos como: a construção de Brasília, o lançamento da
Bossa Nova, o cinema novo, o Teatro Experimental Negro, entre tantos eventos.
Nessa plêiade de fatos populares, exatamente em 1958, surgia a primeira canção
ligada a homenagem nacional de Nossa Senhora Aparecida. Eis a letra de
Aparecida do Norte:
Já cumpri minha
promessa na Aparecida do Norte
E graças a Nossa Senhora não lastimo mais a sorte
Falo com Fé: - Não lastimo mais a sorte
Já cumpri minha promessa na Aparecida do Norte.
Eu subi toda a
ladeira sem carência de transporte
E beijei os pés da Santa da Aparecida do Norte
Falo com Fé: - Da Aparecida do Norte
Eu subi toda a ladeira sem carência de transporte.
Não tenho melancolia,
tenho saúde sou forte
Tenho fé em Nossa senhora da Aparecida do Norte
Falo com Fé: Da Aparecida do Norte
Não tenho melancolia, tenho saúde sou forte
Padroeira do Brasil
Aparecida do Norte
Eu também sou brasileiro sou caboclo de suporte
Falo com Fé: Sou caboclo de suporte
Padroeira do Brasil Aparecida do Norte
Todo meado do ano
enquanto não chega a morte
Vou fazer minha visita na Aparecida do Norte
Falo com Fé: Na Aparecida do Norte
Todo meado do ano enquanto não chega a morte.
Nessa canção foram semeados
alguns elementos importantes para a construção da memória popular afeita à
Nossa Senhora e sua projeção nacional. Além da referência explícita à situação
de Aparecida do Norte e da identificação com o contexto católico brasileiro,
colocado como um todo homogêneo, nota-se a ratificação da imagem como
“Padroeira do Brasil”. E junto desdobram-se qualificativos importantes como “eu
também sou brasileiro, sou caboclo de suporte”. Por certo, ser caboclo não
é pouco coisa na identidade brasileira/ popular. A rima “Aparecida do
norte/morte” por sua vez revela a importância da bênção derivada de
promessa – de onde vem a noção de romaria. Item relevante, a presença da
palavra “transporte”, não apenas significando movimento de outras partes
para a cidade religiosa, mas também, na descrição do local, por meio da ladeira
que conduzia à antiga Basílica. Não menos saliente é a referência à saúde e ao
compromisso de, enquanto viver, cumprir a promessa. Como marco inaugural, a
canção permite ainda uma imprecisão de data, valorizando o compromisso, independente
de data fixa fica expresso que a façanha se repetira “todo meado do ano
enquanto não chega a morte”. Foi a partir desse começo que tudo se
desdobrou. E assim continuo minha peregrinação, aliviado por ter me tornado
devoto do tema.
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