quarta-feira, 17 de maio de 2017

CONTANDO A VIDA 189

A ROMARIA DAS “ROMARIAS”

José Carlos Sebe Bom Meihy

Definitivamente, o tema tomou conta de mim. Bastou pensar em uma sondagem para que o campo de pesquisa se tornasse desafio. E eis-me estudando Aparecida do Norte. A complexidade do assunto, porém, obriga a amplitudes e assim a primeira atitude de alargamento da proposta. Na realidade, a prática das romarias é comum no mundo. Algumas são famosas e guardam prestígio transparecidos em relatos de milagres, graças e pagamento de promessas. No circuito cristão católico, entre tantas, a ida a Roma é cultuada como matriz significativa, presente inclusive em outras religiões, mundo afora. Aparecida do Norte, assim, sugere o uso da peregrinação como ato devoto a ser vivenciado por fieis que reciclam rituais derivados de uma afetuosa memória coletiva.

O caso brasileiro, contudo, apresenta variante que interessa pela originalidade: além dos roteiros de visitas, a produção musical se oferece como espécie de discurso épico continuado, cumulativo, dirigido principalmente, para o público de perfil urbano ou em processo de adaptação ao meio citadino. É exatamente neste sentido que a música sertaneja atua como ativadora de pertencimento popular. Ainda que a tradição romeira tivesse perdido o fundamento eminentemente religioso, alguns referenciais, além do culto à Imagem Milagrosa, ficam expostos: a eleição de um tempo central para o pagamento de promessas, a passagem pela capela onde está guardada a santa e referência às músicas que se desdobram fora dos limites das visitas. Tais fatores compõem lances que permitem supor discursos musicais que fomentam uma lógica devota especial. Submetidas a uma linha do tempo, tais canções formulam a continuidade de uma memória que é mais do que mera propaganda, sendo mesmo um chão que justifica o caminho cultural da devoção profana.

O exame das letras sobre as Romarias como fenômeno não religioso, referentes ao caso do Município de Aparecida do Norte, indica a vivência da fé segundo a tradição de inspiração religiosa popular. Trata-se sim, legitimamente, de fé, mas longe de ortodoxias. Não se mostra prudente, contudo, confundir tal procedimento com catolicismo popular, como se houvesse níveis de vivência cristã. Por certo, a popularização dos meios de transporte faz repontar disputas entre a memória de uma cavalaria – onde o fiel cumpriria a promessa vindo montado a cavalo – em favor de movimentações também feitas a pé, de carro, em caminhões ou ônibus. A repetição de alguns motes como a visita à imagem causadora desse culto de fé, Aparecida do Norte, no estado de São Paulo, serve de base para se pensar na formulação do mito de uma cidade sagrada onde se reciclam tradições de supostos traços medievais. Aliam-se assim dois fatores complementares: a imagem da Senhora Aparecida e a constituição de uma “capital da fé”, espécie de referência obrigatória para a homenagem à Padroeira do Brasil.

Mas, em que medida pode-se propor, pelo exame desse cancioneiro modernizado, a construção de uma memória coletiva capaz de justificar a hipótese de trabalho em favor de uma moderna tradição cultural? A resposta se desdobra do suposto que permite ver a formulação de matrizes narrativas que se repetem, variando a exemplificação, mas garantindo o mesmo sentido. Assim, algumas peripécias ou detalhes de façanhas romeiras podem ser encontrados nas letras das centenas de canções, notadamente de duplas sertanejas mais populares. A que inaugura essa sequência, Aparecida do Norte, foi composta por Anacleto Rosas Jr e Tonico, da dupla Tonico e Tinoco. Cabe lembrar que no ano dessa parceria, 1958, deram-se algumas das mais importantes transformações ligadas à modernização do Brasil. No andamento dos chamados “anos dourados” (1956 - 1961), na trajetória política de gestão de Juscelino Kubitschek, arrolaram-se fatos como: a construção de Brasília, o lançamento da Bossa Nova, o cinema novo, o Teatro Experimental Negro, entre tantos eventos. Nessa plêiade de fatos populares, exatamente em 1958, surgia a primeira canção ligada a homenagem nacional de Nossa Senhora Aparecida. Eis a letra de Aparecida do Norte:
  
Já cumpri minha promessa na Aparecida do Norte 

E graças a Nossa Senhora não lastimo mais a sorte 
Falo com Fé: - Não lastimo mais a sorte 
Já cumpri minha promessa na Aparecida do Norte.

Eu subi toda a ladeira sem carência de transporte 

E beijei os pés da Santa da Aparecida do Norte 
Falo com Fé: - Da Aparecida do Norte 
Eu subi toda a ladeira sem carência de transporte.

Não tenho melancolia, tenho saúde sou forte 

Tenho fé em Nossa senhora da Aparecida do Norte 
Falo com Fé: Da Aparecida do Norte 
Não tenho melancolia, tenho saúde sou forte

Padroeira do Brasil Aparecida do Norte 

Eu também sou brasileiro sou caboclo de suporte 
Falo com Fé: Sou caboclo de suporte 
Padroeira do Brasil Aparecida do Norte

Todo meado do ano enquanto não chega a morte 

Vou fazer minha visita na Aparecida do Norte 
Falo com Fé: Na Aparecida do Norte 
Todo meado do ano enquanto não chega a morte.


Nessa canção foram semeados alguns elementos importantes para a construção da memória popular afeita à Nossa Senhora e sua projeção nacional. Além da referência explícita à situação de Aparecida do Norte e da identificação com o contexto católico brasileiro, colocado como um todo homogêneo, nota-se a ratificação da imagem como “Padroeira do Brasil”. E junto desdobram-se qualificativos importantes como “eu também sou brasileiro, sou caboclo de suporte”. Por certo, ser caboclo não é pouco coisa na identidade brasileira/ popular. A rima “Aparecida do norte/morte” por sua vez revela a importância da bênção derivada de promessa – de onde vem a noção de romaria. Item relevante, a presença da palavra “transporte”, não apenas significando movimento de outras partes para a cidade religiosa, mas também, na descrição do local, por meio da ladeira que conduzia à antiga Basílica. Não menos saliente é a referência à saúde e ao compromisso de, enquanto viver, cumprir a promessa. Como marco inaugural, a canção permite ainda uma imprecisão de data, valorizando o compromisso, independente de data fixa fica expresso que a façanha se repetira “todo meado do ano enquanto não chega a morte”. Foi a partir desse começo que tudo se desdobrou. E assim continuo minha peregrinação, aliviado por ter me tornado devoto do tema.

Nenhum comentário:

Postar um comentário