quarta-feira, 24 de maio de 2017

CONTANDO A VIDA 190

SACI, BOTO E EMÍLIA: malandragem, machismo e feminismo à brasileira.

José Carlos Sebe Bom Meihy

De repente, me vi enredado em temas que na aparência são tidos como menores, sem importância e até folclóricos, no mau sentido. Diria que tudo começou com um convite feito por uma universidade do Mato Grosso do Sul, para que eu retomasse Monteiro Lobato e promovesse releituras de seus textos para crianças. Foi o que bastou. De Lobato para o debate sobre o modernismo foi um “pulo só”... Ups!... “pulo só” é coisa de saci. Pronto, lá estava eu mergulhado no Reino Encantado, perdido no encalço das figuras do Sítio do Pica-pau Amarelo. Por lógico, juntar Lobato com o saci é fácil. Ressaltando a ligação do “Inquérito sobre o saci”, ou seja, do primeiro livro publicado de Monteiro Lobato com a investigação sobre a vigência de histórias derivadas de narradores/leitores do jornal O Estado de São Paulo, exatamente há 100 anos, estava aberta a temporada de entendimento dos novos sacis. E então não apenas a televisão com as repetidas séries sobre o pessoal da Dona Benta, mas também as revistinhas povoadas por versões do Ziraldo ou do Maurício de Souza. Fala-se, pois, de metamorfoses do saci. Imaginem que se sabe que até Hollywood vai se valer do nosso perneta como super-herói.
Bastou Gloria Perez colocar na novela “A força do querer” a figura do boto para que ele fosse reconhecido como figura muito mais popular do que se supunha. A sutileza do personagem encantado, do peixe que em noites de lua vira galã sedutor que fecunda mulheres enamoradas, ganhou o público, arrastando curiosos que se deixam enlevar pela lenda indígena. Adaptada ao gosto atual, a história amazonense ganha o imaginário da classe média e assim alimenta fantasias que não têm apenas o apelo infantil. Pois bem, tinha guardado em minha gaveta uma série de relatos de aparições estranhíssimas do tal boto (ou valeria o plural: botos?), e eis que do dia para a noite, tais escritos ganharam ares de desafio e como que recuperando vida própria me impõem agora publica-los. Metaforicamente é como se os peixes/homens me obrigassem a aceita-los com vida própria.
E tem a boneca Emília, também criação lobateana que, por força da impertinência, vai ganhando fama e lugar na identificação das modernas mulheres brasileiras. Irreverente, cheia de artifícios maliciosos, contestadora, a menininha de pano, metida, vai se impondo, conquistando personalidade e se tornando uma espécie de paradigma da emancipação das mulheres. Não há, nessa direção, como deixar de lado duas possibilidades analíticas interessantes. Uma que soma à Emília o crescimento de suas leitoras infantis. Dizendo de outra maneira, é como se as crianças crescessem e ao fazê-lo colocassem em prática o que aprenderam. Outra, é a inequívoca aproximação digna de ser feita com a personalidade do movimento feminista em geral. Sim, Emília bem que poderia ser um paradigma da nova presença da mulher brasileira.

Com um esforço mínimo pode-se dizer que há um trio que ajuda a pensar a moderna constituição da identidade nacional. O saci, perfeito malandro, se mostra uma figura assimilada. Se nas raízes de sua mitologia figurava como uma espécie de diabinho, aos poucos vai perdendo a agressividade, se transforma em um bonequinho palatável, símbolo de esperteza quase inocente. Aliás, uma das mais claras manifestações da adocicação do saci é seu uso pedagógico. Cabe reconhecer que não é complicado aliar o saci ao malandro, enganador, simpático embusteiro. Com o boto se torna possível discutir de forma agradável e até simpática o machismo brasileiro. Como homem, conquistador que é, o boto sensualizado se impõe, enganando a todos, mas também se servindo como assunto polêmico. Emília, muito mais do que boneca, perde sua graça desengonçada e vai construindo argumentos impagáveis, capazes de nutrir discursos que quebram a origem tola e tosca de boneca de pano. Pronto... Eis que personagens do mundo imaginário ganham vida e consistência argumentativa em favor de um debate que nada tem de pândego ou brincadeira. A mitologia, assim, vira cultura e se oferece de maneira fácil e até elegante... Aproveitemos. 

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