SALVAÇÃO POR LEMINSKI
José Carlos Sebe Bom Meihy
Às quartas
feira, quase sempre, reservo um tempo para me dedicar às crônicas que escrevo,
há cerca de doze anos. É um compromisso moral, comigo mesmo, como se estivesse
desenhando meu próprio perfil. Há poucos dias, retracei algo que depois surpreendeu
até a mim mesmo. Dizia: não são os livros
que nos pertencem, mas pelo reverso, somos nós que pertencemos a eles. É
bem possível que tenha ouvido isso antes, mas soou-me tão autêntico que
legitimei a expressão. Sim, existe um certo fascínio, algo estranho transitando
entre o vício e o fetiche pelos livros. Um sentimento fantasmagórico me prende
às páginas imprensas, postas em capas, e adquiridas pela força da vontade de
leitura. E como gosto de me perder em livrarias... É como se fosse colocado em
ponto de escolhas que indicam caminho para todos os problemas. Dias há em que
saio do trabalho e me reconforto buscando títulos que não procuro, mas que se
me impõem com graça. Confesso que fiquei intrigado com aquela frase que saiu
quase espontânea, como se não governasse minha vontade. E aceitei assim, com
inquieta naturalidade, o que brotou do impulso de uma consideração. O instinto
existe.
Ainda com o
frescor dessa meditação, na intimidade dialógica com meus botões, tentava me
distrair das charadas burocráticas inerentes ao meu ofício. Em termos de
trabalho, tinha que tomar uma decisão drástica. Pensei muito, admitindo a
intermitência da frase escrita sem querer (sem querer?). Envolto nessa
problemática, com a decisão encaminhada, pareceu-me ético comunicar a um chefe querido,
pessoa que, muito acima de cargo, carreia meu respeito e admiração. Imagine minha
perturbação... Considere também que sou paciencioso, discreto e tento cuidar
dos efeitos de minhas atitudes professorais. Pois é. Estava assim quando me
dirigi à sala da pessoa a quem deveria apresentar meu veredito. O caminho, devo
dizer, parecia estrada sem fim. De toda forma, cheguei e ao me anunciar ouço um
lacônico: fulano de tal está viajando, só volta na semana que vem. Dois
sentimentos atravessaram minha cabeça exaurida. Um, remetia à alívio, pois,
afinal, poderia pensar um pouco mais, ou pelo menos domar eventual exaltação;
outro, porém pressionava a conformação, sugerindo que independente do dever
ético, eu deveria continuar a viagem e ir diretamente para as instâncias e
apresentar a demissão. Ao sair frustrado do escritório, perfazendo o roteiro da
volta, eis que encontro pessoa querida, com um sorriso espontâneo, sem nada
saber, e diz algo próximo disso: mestre,
tenho um presente para você. Com zelo medido, abre a mochila e tira um
livro, dizendo “é para você, sempre quis
lhe dar este presente”.
Logo eu que
tanto gosto de mimos, em vez de efusivos agradecimentos, soltei algumas das
agruras que me cercavam. Senti na hora que não estava dimensionando o que devia,
trocando o agradecimento pela toxina de minha mágoa. Continuei os afazeres,
esperei o expediente acabar, e finalmente no retorno para a casa folheei o
livro com capa amarela, bem acessa, que, em contraste também berrante dizia em
letras negras “Paulo Leminski – Cruz e
Souza, Bashô, Jesus, Trótski – Vida: 4 biografias”. Por lógico, comecei a
leitura imediatamente, ainda na condução que me levava de volta à minha casa. Já
reparou nos rituais de início de leitura!? Tenho os meus tão bem instalados que
os cumpri com a mesma mecânica de sempre: dei uma folheada geral, vi o tipo de
diagramação, o sumário, li a orelha, a quarta capa e voltei ao autor... No
caso, Leminski, não há como deixar a curiosidade amansada. Um poeta de vida
intrigante, escrevendo sobre quatro ícones de improváveis combinações. Tudo em
um livro dito de biografias. Pronto, estava aberto o céu. O céu e o inferno,
pois gostaria de me abstrair da dura realidade profissional e me mudar sem
tréguas para aquelas páginas abençoadas que trançavam poemas, reflexões líricas
e gravuras. Tudo feito com requinte de alguém que soube se despedir da vida,
ainda jovem, não sem antes homenagear seus personagens. Não consegui parar. As
interrupções necessárias foram como tortura.
Como acabou
a minha história? De forma simples: tive que adivinhar o denominador comum
capaz de explicar a junção de Cruz e Souza, Bashô, Jesus e Trotski. Foi na
busca de lógicas possíveis que Leminski amarrou poetas e visionários, porém,
todos trágicos. Frente a ironia dos fatos e o desconcerto do presente, me veio
à mente o imponderável, dito aliás, pelo poeta/biógrafo: acordei bemol/ tudo estava sustenido/ sol fazia/ só não fazia sentido.
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