DE
PASSAGEM PELO ISLAMISMO.
Como
sempre, andava atarefado com afazeres atrasados. Na correria comum a
professores em fim de semestre, não tive tempo de me preparar como gosto para
longa e acalentada viagem, e olha que se tratava de uma experiência importante
em minha vida. O destino marcado era a terra de meus pais, o Líbano, para onde eu
iria em busca de reconhecimento de familiares e melhor compreensão de uma
cultura que, apesar de ter crescido com, me parecia distante, talvez distorcida
ou quiçá desatualizada. Nem sei dizer por que demorei tantos anos para tomar a
decisão de, finalmente, me dedicar à busca de minha própria identidade.
Foi
agradável surpresa saber que a passagem para Beirute daria direito a uma parada
em Dubai, nos Emirados Árabes. Aceitei a proposta como presente complementar. Antes,
devo dizer que havia estado em Dubai, de passagem, há uns dez anos, mas numa
situação deveras complicada, pois houve enorme desacerto na conexão que faria
no Cairo, a caminho da Índia, e acabei por perder três dias preciosos. Apenas
dormi na cidade do pouco que vi, não me lembrava de praticamente nada. Além
disso, meio sem querer, entrei numa dessas discussões das redes sociais e me vi
convidado a tomar a defesa de grupos islâmicos que, sempre, acabam condenados a
generalizações. Mesmo sendo contra querelas eletrônicas, coletivas e indiretas,
no caso, por se tratar de interlocutora querida, e por portar conteúdo
preconceituoso, delicadamente objetei. Isso, contudo ficou em minha cabeça e já
no avião, insone, retomei o caso e me propus verificar, nos limites de cinco
dias de turismo, como veria a situação.
Dubai
me foi revelação absoluta. Mesmo preferindo cidades que se constroem com o
tempo e com as contradições inerentes ao mundo tradicional exposto à
modernidade, fiquei deslumbrado com o que se abria a cada passo. E não poderia
ser de outra forma, pois um país de apenas 44 anos de vida, e com uma população
nativa de apenas 2 milhões de pessoas, teria mesmo que se preparar para receber
outros 7 milhões de imigrantes. Pronto, bastaria esse enunciado para ferver
minha curiosidade: como se daria o encontro de tantas culturas em um país
oficialmente mulçumano? Devo lembrar que só naquela cidade existem mais de 150
nacionalidades e que, para citar um exemplo, a comunidade indiana sozinha é
representada por cerca de 400 mil pessoas.
Diria
que cumpri um programa corriqueiro. Passado o tempo de ajuste de 7 horas de
fuso horário, fiz um tour pela
cidade, no outro dia fui a Abu Dabhi, pois queria conhecer a magnífica mesquita
e ter a dimensão do progresso permitido pelo petróleo; em seguida, um dia inteiro
no deserto, e outro mais para a visita ao maior edifício do mundo e algumas
compras. Durante todos os trajetos travei contato com pessoas diferentes, não
apenas turistas. Chamou-me a atenção a variedade de aspectos, em particular das
vestimentas. Mulheres com burca, chador, homens com as mais variadas soluções
de roupas, todos convivendo aparentemente bem com os modos ocidentais em shorts, bermudas, chinelos. E não
poderia ser de outra forma, para um país que quer se distinguir no manejo do
turismo globalizado. Ironicamente, em minha cabeça retraçavam-se alguns
dilemas: avesso da reputação de invasores, nos Emirados o que se via era o oposto,
ou seja, os estrangeiros “invadindo”. E como ficava então o caso da “intolerância”,
pois lá via-se de tudo.
Creio
ser dispensável dizer da qualidade da comida. A culinária internacional
concorria (com desvantagem) com a árabe, mas isso se tornou detalhe. Realmente
me impressionou a higiene dos espaços públicos. Sei que a cultura islâmica é
bastante severa com a limpeza, e que o asseio absoluto faz parte de todos os
rituais cotidianos. Entra-se em casa sem sapatos, lava-se a mão com frequência,
ingere-se hortelã para a limpeza dos dentes. Tudo isso eu sabia, tendo
aprendido em vários países de cultura islâmica. O que representou novidade, foi
o acatamento do diferente: respeito como nunca vi. Delicadeza exagerada e simpatia de sobra, em
cada gesto singular. Procurei conversar com pessoas sobre o assunto, e as
respostas sempre levavam para o mesmo ponto: a leitura do Corão. Nada a ver com
interpretações vulgares de quantos ouvem notícias sem entendimento e conferem
ao islamismo a pecha de “fanáticos” ou “terroristas”. Nada a ver com o islã que
reza, que aceita o outro e nos surpreende.
Dói
ver a ignorância sobre o oriente em geral, mas particularmente sobre os
mulçumanos. Imagine, por exemplo, que no mesmo país, ante mulheres cobertas por
vestes pretas e sem mostrar sequer os cabelos, a dança do ventre tem lugar de
maneira espetacular e pública. E que dizer das campanhas em favor da concórdia
mundial? Nos corredores dos shoppings
sempre se veem campanhas em favor de crianças africanas ou das pesquisas contra
o câncer. E tudo com naturalidade. Intriga o reverso disso, pois, afinal, por
que tanta divulgação e agressividade contra eles? Como suportar o simplismo
implicado da hipótese de que todos são potenciais Bin Laden?
Vamos
a um pouco de História. Quando no ano 711 os árabes invadiram a Península
Ibérica, programou-se uma reação memorável que resultou na definição de
Portugal e Espanha como os primeiros estados modernos. Iniciava-se assim o
estabelecimento de uma linha divisória calcada na intolerância, fixada pela
fronteira religiosa. Então, cristãos se portavam com judeus, ciganos e
islâmicos. O xenofobismo, séculos afora, cresceu junto com a determinação dos
estados nacionais, mas, paradoxalmente hoje, em plena globalização, ainda
assistimos pessoas clamando a discórdia em nome da defesa da pátria e de
supostos religiosos. Duas indagações se constroem: 1- por que se estabelece uma
imagem generalizada, negativa, de um bilhão e seiscentas mil pessoas – a
segunda maior unidade religiosa do planeta – em detrimento de grupos
minoritários? Qual razão explica o fato de pessoas que nunca leram o Corão
serem levadas a reduzir tudo a vingança e violência?
De
passagem pelo universo islâmico, aprendo ver o mundo por outros olhos. Aprendo
também a perceber a fragilidade de nossos conhecimentos de um mundo que
ignoramos e que, exatamente por isso, refutamos. Não gosto de supor as
contradições da globalização, pois ao mesmo tempo em que se internacionaliza o
capital, gera-se exagerado preconceito contra o outro. Afinal, diferentes somos
nós, ou eles?
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