quarta-feira, 19 de julho de 2017

CONTANDO A VIDA 196

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DE PASSAGEM PELO ISLAMISMO.

Como sempre, andava atarefado com afazeres atrasados. Na correria comum a professores em fim de semestre, não tive tempo de me preparar como gosto para longa e acalentada viagem, e olha que se tratava de uma experiência importante em minha vida. O destino marcado era a terra de meus pais, o Líbano, para onde eu iria em busca de reconhecimento de familiares e melhor compreensão de uma cultura que, apesar de ter crescido com, me parecia distante, talvez distorcida ou quiçá desatualizada. Nem sei dizer por que demorei tantos anos para tomar a decisão de, finalmente, me dedicar à busca de minha própria identidade.

Foi agradável surpresa saber que a passagem para Beirute daria direito a uma parada em Dubai, nos Emirados Árabes. Aceitei a proposta como presente complementar. Antes, devo dizer que havia estado em Dubai, de passagem, há uns dez anos, mas numa situação deveras complicada, pois houve enorme desacerto na conexão que faria no Cairo, a caminho da Índia, e acabei por perder três dias preciosos. Apenas dormi na cidade do pouco que vi, não me lembrava de praticamente nada. Além disso, meio sem querer, entrei numa dessas discussões das redes sociais e me vi convidado a tomar a defesa de grupos islâmicos que, sempre, acabam condenados a generalizações. Mesmo sendo contra querelas eletrônicas, coletivas e indiretas, no caso, por se tratar de interlocutora querida, e por portar conteúdo preconceituoso, delicadamente objetei. Isso, contudo ficou em minha cabeça e já no avião, insone, retomei o caso e me propus verificar, nos limites de cinco dias de turismo, como veria a situação.

Dubai me foi revelação absoluta. Mesmo preferindo cidades que se constroem com o tempo e com as contradições inerentes ao mundo tradicional exposto à modernidade, fiquei deslumbrado com o que se abria a cada passo. E não poderia ser de outra forma, pois um país de apenas 44 anos de vida, e com uma população nativa de apenas 2 milhões de pessoas, teria mesmo que se preparar para receber outros 7 milhões de imigrantes. Pronto, bastaria esse enunciado para ferver minha curiosidade: como se daria o encontro de tantas culturas em um país oficialmente mulçumano? Devo lembrar que só naquela cidade existem mais de 150 nacionalidades e que, para citar um exemplo, a comunidade indiana sozinha é representada por cerca de 400 mil pessoas.

Diria que cumpri um programa corriqueiro. Passado o tempo de ajuste de 7 horas de fuso horário, fiz um tour pela cidade, no outro dia fui a Abu Dabhi, pois queria conhecer a magnífica mesquita e ter a dimensão do progresso permitido pelo petróleo; em seguida, um dia inteiro no deserto, e outro mais para a visita ao maior edifício do mundo e algumas compras. Durante todos os trajetos travei contato com pessoas diferentes, não apenas turistas. Chamou-me a atenção a variedade de aspectos, em particular das vestimentas. Mulheres com burca, chador, homens com as mais variadas soluções de roupas, todos convivendo aparentemente bem com os modos ocidentais em shorts, bermudas, chinelos. E não poderia ser de outra forma, para um país que quer se distinguir no manejo do turismo globalizado. Ironicamente, em minha cabeça retraçavam-se alguns dilemas: avesso da reputação de invasores, nos Emirados o que se via era o oposto, ou seja, os estrangeiros “invadindo”. E como ficava então o caso da “intolerância”, pois lá via-se de tudo. 

Creio ser dispensável dizer da qualidade da comida. A culinária internacional concorria (com desvantagem) com a árabe, mas isso se tornou detalhe. Realmente me impressionou a higiene dos espaços públicos. Sei que a cultura islâmica é bastante severa com a limpeza, e que o asseio absoluto faz parte de todos os rituais cotidianos. Entra-se em casa sem sapatos, lava-se a mão com frequência, ingere-se hortelã para a limpeza dos dentes. Tudo isso eu sabia, tendo aprendido em vários países de cultura islâmica. O que representou novidade, foi o acatamento do diferente: respeito como nunca vi.  Delicadeza exagerada e simpatia de sobra, em cada gesto singular. Procurei conversar com pessoas sobre o assunto, e as respostas sempre levavam para o mesmo ponto: a leitura do Corão. Nada a ver com interpretações vulgares de quantos ouvem notícias sem entendimento e conferem ao islamismo a pecha de “fanáticos” ou “terroristas”. Nada a ver com o islã que reza, que aceita o outro e nos surpreende.

Dói ver a ignorância sobre o oriente em geral, mas particularmente sobre os mulçumanos. Imagine, por exemplo, que no mesmo país, ante mulheres cobertas por vestes pretas e sem mostrar sequer os cabelos, a dança do ventre tem lugar de maneira espetacular e pública. E que dizer das campanhas em favor da concórdia mundial? Nos corredores dos shoppings sempre se veem campanhas em favor de crianças africanas ou das pesquisas contra o câncer. E tudo com naturalidade. Intriga o reverso disso, pois, afinal, por que tanta divulgação e agressividade contra eles? Como suportar o simplismo implicado da hipótese de que todos são potenciais Bin Laden?

Vamos a um pouco de História. Quando no ano 711 os árabes invadiram a Península Ibérica, programou-se uma reação memorável que resultou na definição de Portugal e Espanha como os primeiros estados modernos. Iniciava-se assim o estabelecimento de uma linha divisória calcada na intolerância, fixada pela fronteira religiosa. Então, cristãos se portavam com judeus, ciganos e islâmicos. O xenofobismo, séculos afora, cresceu junto com a determinação dos estados nacionais, mas, paradoxalmente hoje, em plena globalização, ainda assistimos pessoas clamando a discórdia em nome da defesa da pátria e de supostos religiosos. Duas indagações se constroem: 1- por que se estabelece uma imagem generalizada, negativa, de um bilhão e seiscentas mil pessoas – a segunda maior unidade religiosa do planeta – em detrimento de grupos minoritários? Qual razão explica o fato de pessoas que nunca leram o Corão serem levadas a reduzir tudo a vingança e violência?


De passagem pelo universo islâmico, aprendo ver o mundo por outros olhos. Aprendo também a perceber a fragilidade de nossos conhecimentos de um mundo que ignoramos e que, exatamente por isso, refutamos. Não gosto de supor as contradições da globalização, pois ao mesmo tempo em que se internacionaliza o capital, gera-se exagerado preconceito contra o outro. Afinal, diferentes somos nós, ou eles?

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