Hermeto Pascoal lança o álbum 'No mundo dos sons'
O multi-instrumentista chega com disco inédito depois de 10 anos sem gravar
O processo criativo de Hemeto Pascoal foge completamente da formalidade. Ele não precisa se isolar num quarto da sua casa, no bairro de Jabour, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, para compor as músicas que reafirmam a genialidade que o fez conhecido como “bruxo dos sons”. A inspiração para ele pode surgir em cima do palco – onde costuma improvisar o tempo todo – ou ao batucar no próprio corpo.
Aos 81 anos, o veterano compositor, arranjador e multi-instrumentista nascido em Lagoa da Canoa (Alagoas), há 10 anos sem lançar disco, está chegando ao mercado com No mundo dos sons, álbum duplo que saiu pelo selo Sesc, no qual reuniu 18 temas – todos inéditos. Alguns deles homenageiam “irmãos espirituais que a música me concedeu”, diz com a pureza que lhe caracteriza.
No mundo dos sons, que Hermeto gravou com seu grupo, no estúdio Gargolândia, em São Paulo, pode ser ouvido também nas plataformas digitais de streaming Spotify, Deezer, Google Play Music e Aple Music. Além de assinar a direção musical, composições e arranjos, ele toca pianos, teclados e escaletas, e utilizou instrumentos nada convencionais como berrante, apito, colher e chaleiras – sempre com a celebrada maestria.
Hermeto, pelos seus cálculos, tem armazenado algo em torno de 9 mil composições. “ Registro tudo em cadernos, sem títulos, mas, já com os acordes. Depois, na hora da execução num show, ou em gravações de estúdio, podem até ganhar novos arranjos”, explica. “As alterações no andamento, no entanto, não desvirtuam do que foi escrito originalmente”, acrescenta.
Ele conta que em fevereiro levou para o estúdio paulista 30 músicas. “A maioria foi composta há muito tempo e fazia parte do meu acervo. Mas há também coisas mais recentes, embora para mim, música não tem idade, gênero ou nacionalidade. Música é universal. Criadores de outras nacionalidades compartilham espiritualmente comigo dessa ideia”.
Sobre os nomes dados aos temas, com os quais presta homenagem a compositores brasileiros, expoentes do jazz, ex-integrantes do seu grupo e familiares, ele conta que a escolha foi feita depois das músicas prontas, já na fase da remasterização.
“São irmãos de som e alguns, de forma corpórea, já não estão mais entre nós, mas mantêm-se vivos espiritualmente na minha memória afetiva”, ressalta.
Parte deles, o genial albino conheceu em diferentes períodos em que esteve nos Estados Unidos, entre o final da década de 1960 e o começo dos anos 1980. “Em 1969, fui convidado por Airto Moreira e Flora Purim para gravar dois discos com eles. Atuei como compositor, arranjador e instrumentista. À época, conheci Miles Davis (celebrado em Para Malis Davis) e gravei Igrejinha e Nem um talvez, músicas que entraram num disco dele. Naquele tempo fiz amizade, também, com Chick Corea e Ron Carter, outros irmãos”, lembra. Para os dois, Hermeto dedicou Um abraço Chick Corea e Para Ron Carter”, lembra.
Uma outra recordação que o compositor guarda é a do argentino Astor Piazzola, reverenciado em Viva Piazzolla!.. “Em 1986, Piazzola fez um show no Teatro Tuca, em São Paulo, logo após uma apresentação minha. Naquela noite, ele chegou para alguém da produção e disse: ‘Vocês têm que erguer uma estátua para este homem, referindo-se a mim, o que me deixou extremamente envaidecido”.
Tom Jobim, Sivuca, Edu Lobo, Jovino Santos e Carlos Malta são grandes artistas brasileiros que deram nome a outras faixas do No mundo dos sons. “Participei de apenas um disco do Tom, gravado nos Estados Unidos, como arranjador. Quase não nos víamos no Rio de Janeiro. Nos encontrávamos mais em aeroportos. Eu me aproximei do Edu naquele festival da TV Record, vencido por ele com a canção Ponteio. O arranjo da música foi inspirado na sonoridade do Quarteto Novo, grupo do qual eu fazia parte”.
De Sivuca, Hermeto tem uma tenra lembrança. “Adolescente, cheguei a Recife para tentar viver de música. O Sivuca, que era mais velho do que eu, me deu oportunidade na Rádio Jornal do Comércio. Mais tarde nos reencontramos no Rio. Albino como eu, por vezes éramos confundidos. No final da vida, ele foi morar em João Pessoa e nunca mais nos vimos”. Forró da gota para Sivuca é o tributo prestado ao acordeonista paraibano.
No Mundo dos Sons
Álbum duplo de Hermeto Pascoal e grupo, com 18 faixas. Lançamento do selo Sesc. Preço sugerido: R$ 30.
Harmonia no Caos
A base da música é a mais exata das ciências; é a matemática que dá ordem e organiza uma composição ou um arranjo. Ao mesmo tempo, não há nada menos exato que a sensação provocada por uma peça musical que, ao contrário das outras manifestações artísticas, não se apoia em conceitos ou formas visíveis.
Depois de uma vida, está sendo lançado um novo disco de Hermeto Pascoal, talvez o músico brasileiro que melhor represente essa organização do caos, tanto pelos instrumentos inusitados que usa quanto pelas linhas musicais que explora. Se alguém quiser classificar sua música, vai dar com os burros n’água; nada ali é o que parece.
Nos 18 temas de No mundo dos sons, ele homenageia amigos, na maioria músicos, em manifestações livres e soltas — alguém mais racional pode perguntar por que festejar Ron Carter e Astor Piazzolla, por exemplo, com temas que embutem frevos? E por que não? O importante é que tudo faz sentido e, mais importante, aguça os sentidos — principalmente o prazer de fazer pensar.
Logo na abertura do disco, Hermemeto mostra sua aguda noção de tempo musical num tema dedicado a São Paulo, quando coloca o ouvinte no meio de sons que parecem se chocar, mas que na verdade vão se harmonizando para mostrar o corre-corre da cidade grande. Tudo parece acabar no trânsito, como se houvesse música ali; e o surpreendente é que há.
Em Para Miles Davis, ele desenvolve um tema livre a partir de uma construção musical quase cubista, em que as notas parecem invertidas, usando instrumentos tradicionais ao lado de sons de gansos e galinhas e uma percussão fora dos padrões. Mas, de novo, só há música onde existe ordem; mesmo que seja assim, com toda liberdade.
Hermeto explora o jazz (Vinicius Dorin em Búzios), frevo (Para Thad Jones), baião (Forró da gota para Sivuca) ou qualquer outro gênero musical, mas o importante para ele parece ser ultrapassar as divisas que se apresentem. Os temas — quase todos — são variados, abusam de mudanças de andamento e cortes melódicos, e provocam enquanto entretêm.
O multi-instrumentista e grupo radicalizam a proposta em Entrando pelos canos, tema inteiramente desenvolvido sobre instrumentos de percussão — e aí valem colheres de plástico, berrante, tamancos de madeira e canos de alumínio. É uma música completa que nasce do batuque. Para encerrar, ele propõe um tema mais introspectivo, delicado, que por vezes cobre um diálogo entre Hermeto e seu neto, a quem a música Rafael amor eterno é dedicada. Uma coda: é música pura, direta, livre e fantasiosa, onde o único fundamento estético parece ser o prazer de fazer e de ouvir.
Paulo Pestana
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