quarta-feira, 2 de agosto de 2017

CONTANDO A VIDA 198

PEQUENO INVENTÁRIO DE UMA VIAGEM PROFUNDA.

José Carlos Sebe Bom Meihy

Demorei muito até fazer uma viagem ao Líbano. Depois de tantos périplos, finalmente tomei a decisão e, com mais de 70 anos, vim. Ao cabo de duas semanas, devo dizer que fiz uma viagem dentro de outra. O trajeto físico foi facilmente identificado, como seria para qualquer turista, mas o espiritual... Sim, aconteceu algo que superou a expectativa de visitante. Devo dizer também que não me preparei devidamente para essa aventura. A correria de sempre, as atribuições de professor em fim de semestre, as consequências da crise que nos acomete, tudo junto ampliou a expectativa e dilatou o espaço da surpresa.

Como é comum a filhos de emigrantes, tive preocupação de tornar relativo meu dilema identitário. Sempre quis me sentir, acima de tudo, brasileiro. Os encargos de tal escolha implicaram em uma complexa seleção de valores vivenciados. Diria sem medo de errar que acalentei a manutenção de alguns traços da cultura libanesa, mas sempre atento ao filtro da conveniência brasileira. Meu empenho inclusivo, de certa forma, corroborava com uma atitude comum entre nós: o acatamento simpático dos brasileiros para com os libaneses. Assim, na insistência indiscutível de minha brasileiridade, aprendi a lidar com o que se aceitava com facilidade da herança árabe. Vivendo em um lar onde o convívio diário forçava a bilateralidade, soube valorizar o aprendizado de detalhes superficiais que, contudo, satisfaziam a todos, principalmente no que tangia à comida e a um certo estereótipo de árabe. Fiz questão de não aprender a língua árabe, ainda que meu pai insistisse, e, das poucas coisas que faria diferente, esta seria uma delas.

Lembro-me de um ditado que ficou esculpido em minha memória: o que é de raça, arrasta. Ao fazer a avaliação da viagem, entendo melhor a profundidade da sabedoria popular. Apesar de meu esforço empenhado no abrasileiramento, nunca deixei de me permear pelo que seria “de raça”. Estar viajando por todo o país me permitiu acatar este pressuposto. E como me foi estranho ver o desenho de rostos de parentes expressos em olhares, trejeitos, cheiros e gestos alheios. Era como se identificasse nos outros, traços pessoais. E quantas vezes me vi no esforço de tratar bem as pessoas, até me surpreendi pensando em pessoas chamando-as afetivamente de “habib”.

Ainda que tangenciando, devo reconhecer que meu inconsciente, sempre tão zeloso, cuidou de misturar os dois objetivos da viagem. No fundo queira conhecer minhas raízes e isso implicava riscos. Temia frustrações possíveis em tais investidas. Tinha poucas informações, mas sabia de duas cidades referenciais. Uma, pelo lado materno, Zahe, no encantador Vale do Beká, outro, em localidade charmosa, junto às ruinas de Biblos, Djbeil. Também havia sido informado que bastava chegar a cada lugar e perguntar. Para quem trabalha com memória, isso parecia um convite a estudos, pois é tão viva a presença do passado que, mesmo desconhecidos, são capazes de alguma informação.

Meu primeiro movimento foi passar por Zahle. No caminho de visita à floresta de cedros, tomei cuidado em sondar. Aprendi logo que a família Saba é relativamente importante e que Sebe seria uma variação. Logo me foi indicado um senhor, de nome Fouad, que poderia dar pistas. Em nova investida, dias depois, o mesmo simpático e velho senhor me explicava que o ramo Saba tinha muitas variantes e poderia ter gerado Sebe, Sabbe, Shebat, entre outros. Disse também, tanto o Brasil como a Austrália poderiam ter sido o destino de alguns. Mais pesquisas e me foi revelado algo que tinha ouvido falar: meu avô Felipe, seria modesto pastor e ao emigrar na leva de 1899, ao declarar oralmente sua procedência, negando seu nome legítimo, disse ser um Seba. Mesmo desacreditando, o registrador, em vez de colocar Seba, usou Sebe. Tais informações teriam sido passadas por outra fonte, os Abdalah, da linhagem materna. Bem-sucedidos no Brasil, este ramo teria voltado algumas vezes a Zahle e reportado tal história. Consegui ser recebido pelos Abdalah e pude simpaticamente ouvir relatos sobre os evadidos do Vale do Beká.

Pelo lado paterno tudo foi mais fácil. Em contato com a prefeitura, soube da existência do ramo Abimery que teria gerado variações como Abud Merhi, Bom/Bon Meihy e Adudmerty. Também tive a confirmação de que um ramo desses grupos teria ido para a Austrália. Soube ainda que um segmento dos Bom Meihy teria sido completado pelo lado de minha avó, de origem das montanhas de onde teriam vindo os Ghanem, de minha avó. Confesso que, levado a conhecer alguns destes “primos”, me emocionei muito, como se tivesse em frente ao meu pai. E repetia comigo mesmo “o que é de raça arrasta”.

Feitas estas descobertas, restava sondar a possibilidade de juntar a todos. O desejável empreendimento, porém, se mostrou inviável. Eram pessoas muito diferentes, diversas em nível econômico e, todos mesmo cristãos, uns eram católicos romanos, os de Zahle, e outros, os de Djbeil maronitas, ortodoxos. Mas não eram só estas diferenças, presidia também uma forte variação política. De toda forma, aprendi algo a respeito de mim mesmo. E só este trajeto afetivo teria valido para o abraço em minha própria história.  

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