quarta-feira, 30 de agosto de 2017

CONTANDO A VIDA 201

… A COLHEITA É COMUM, MAS O CAPINAR É SOZINHO...  

José Carlos Sebe Bom Meihy


Juro!... Quem tem a escrita como ofício rotineiro sabe que os melhores textos são os que produzimos beirando os derradeiros. Haja, então, solenidade, comprometimento e desejo de súmula. Sinceramente, do mais fundo do meu coração, esperei um desses momentos e, distraído, não o percebi quando se aproximou. Entendo agora mais profundamente as maravilhas da escuridão de um mar azul na superfície contrastante. Bastou um mergulho vertical para a constatação de que a penumbra profunda é a ausência de cores, e, assim, lugar bendito para meditações existenciais. Há belezas insondáveis nas trevas, creiam. Por isso, por favor, não pensem que me remeto a fatalismos mórbidos e que presidem enevoados véus cobrindo estas minhas palavras empenhadas. Pelo contrário. Muito pelo contrário, aliás. Deixe-me contar o que se passou...
Herança maior de meus pais, o trabalho sempre me foi como o ar. Respiro para vivê-lo no ritmo dado pelo balanço de compromissos sempre multiplicados e urgentes. Amo o que faço. Sou movido pela paixão que trança docência, pesquisa, escrita e transcendência geracional. E nunca medi esforços para viver cada gota orvalhada pela profissão de professor. A corrida dos dias, a vida empurrada pelos deveres, contudo, dita peças, provoca vertigens e chega a assustar. Com certa grandiosidade, experimento a chegada dos meus 75 anos de vida. E, permitam-me o desvario: mais que nunca, sinto-me inteiro. Contemplo, por certo, “compaixonado”, meus muitos erros, desacertos e equívocos. Não queria, no entanto, ter experimentado outra vivência que não a que esculpi. E foi nesse caminhar que, entre meus feitos recentes, na paisagem dos meus dias de maturidade, optei por uma viagem à terra de meus antepassados. Historiador, não poderia deixar de retraçar andanças explicadoras do que sou.
Estar no Líbano, me foi uma excursão no melhor de minha imaginação peregrina. Emoções à parte, foi lá que meu coração – coração de verdade, órgão físico – começou a reclamar da existência atribulada. Um dia, sozinho em hotel, senti-me muito mal. Imaginei mesmo, o abraço da morte, e não me faltou poesia frente à ironia do destino: morrer onde meus pais nasceram!... A dor passageira, forte e amedrontadora, felizmente, aliviou-se rápida, mas deixou memória. Voltou, mas conseguia domesticá-la sem maiores atenções, e distraído pelos atrativos daquele cenário me foi mecânico atribuir tudo ao cansaço, calor, comida farta e exagerada. A volta – como qualquer retorno ao mundo real – reativou dores, e, assim, a sempre adiada ida aos médicos se me impôs. Diagnóstico imediato: angina crônica com severos riscos. Pareceu-me algo dramático saber que mais de 75% de minhas artérias estavam comprometidas. Rápido, o médico alertou meus filhos, e em dois dias estava pronto para um procedimento primeiro que leva nome tão esdrúxulo como os acontecimentos: cineangiocoronariografia. Houve segunda interferência. Tudo correu bem.
Devo dizer que a eficiência dos filhos aliada à prevenção médica se fizeram eficazes. Por lógico, busquei colaborar e o fiz de maneira a surpreender a pequena plateia de convivas íntimos. Sabe, bateu-me uma paz insondável. Se em algum momento fui tranquilo, estava marcado aquele tempo “sem medo ou pânico”. Cuidei, antes, de deixar por escrito algumas recomendações e me aprumei para os tais procedimentos cirúrgicos. E me arrumei para a ida ao hospital: roupa gostosa, uma medalhinha de São Charbel, um terço ganhado de amigo especial e... e um livro catado um pouco ao acaso (se é que acaso existe). Sabe que volume peguei? Grande Sertão, veredas. Sim me pareceu azado reler Guimarães Rosa nas eventuais esperas. Ah! Levei lápis também. A leitura demorou a ser feita, pois as leis da pressa exigiram desdobramentos feitos em soros, medicamentos em horas exatas, incômodos pluralizados em cadências próximas. Mas veio o tempo da almejada leitura e, já bem melhor, exercitando a paciência dos que recuperam a noção dos fatos em unidade de terapia intensiva, ao léu abri o livro na seguinte passagem:
Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vaivem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços. Dor não dói até em criancinhas e bichos, e nos doidos – não dói sem precisar de se ter razão nem conhecimento? E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo mistério. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo. Se eu estou falando às flautas, o senhor me corte. Meu modo é este. Nasci para não ter homem igual em meus gostos...
Voltei à primeira página e entre um ato médico e outro atravessei a leitura, como se a primeira vez fosse. E de certa forma o era. Já em casa, comedido e empenhado na mudança de hábitos, me vejo novamente frente ao dilema de Riobaldo, e entendo a vastidão de suas palavras explicando a vida: o senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro...

À propósito, cabe lembrar que escrevo para leitores, ter quem me leia é o que dá sentido à plantação de palavras colhidas, mas o capinar é meu, pessoal e intransferível. Vivemos juntos, mas ao perceber a morte temos que ser únicos, sozinhos. Que bom que ainda nos resta colher, juntos, portanto...

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