quinta-feira, 24 de agosto de 2017

TELONA QUENTE 199


Roberto Rillo Bíscaro

A Tempestade de Areia que intitula a estreia da roteirista e diretora israelense Elite Zexer não acontece em nível climático, mas é metáfora pra comoção interior das personagens do filme do ano passado, disponível na Netflix. Consta que Zexer aprofundou-se na cultura beduína pra realizar a película, mas o fato de se tratar de uma judia a falar sobre cultura arabizada não pode ficar de fora em uma discussão mais erudita e consequente.
Layla é uma adolescente que aparentemente tem a sorte de ter um pai superliberal, que a ensina a dirigir e ri das piadinhas e comentários revoltosos da filhota, que fala ao celular, como qualquer moçoila ocidental. Sua mãe tem opinião bem diferente do homem, que a está trocando por outra bem mais jovem e para a qual Jalila tem que preparar as bodas. Layla está apaixonada por um colega de escola proveniente de outra tribo, impensável na cultura beduína endógena dos casamentos arranjados. Jalila se opõe à ligação; Layla crê que o papai descolado aceitará de boa. Será?
Tempestade de Areia coloca duas situações amorosas em contraponto pro espectador perceber como o patriarcado é hipócrita e nocivo às mulheres. Também é sobre (falsas) aparências e quem são, ou deveriam ser, aliados em situação de opressão. Layla faz certo em ser tão parcial ao pai, contraponto “legal” da amarga mãe? Se fosse apenas por Jalila, já valeria ver o filme. A atriz Ruba Blal estraçalha em sua contida interpretação da mulher que tem que aguentar (mais ou menos) calada todo o fardo duma tradição vantajosa apenas pros homens. Layla também interessa, especialmente pro espectador saber se terá condições de furar o bloqueio dos costumes. Nesse mundo onde as mulheres são obrigadas à resignação, e por isso desenvolvem válvulas de escape, as personagens femininas são mais fascinantes.
Ao que tudo indica, a pressão social é enorme no sentido de preservar a hegemonia masculina e subserviência feminina. Aí reside um defeito de Tempestade de Areia: isso é intuído, mas jamais mostrado, porque a aldeia parece fantasma; as personagens vagam isoladas em um planeta desértico quase que só delas, então temer o quê de represália social? Interação com algum líder religioso pra sabermos o peso que isso tem, por exemplo, não ofuscaria o brilho da cinematografia, que certamente optou por menos gente pra somar ao ar de solidão remota e desértica da película.
Pena que a Netflix tirou O Atentado de seu catálogo, mas ainda há Fauda e Hostages (ainda não vi), ou seja, produtos israelenses, pra sairmos um pouco do circuito América do Norte-Europa. Mas seria muito salutar se o cardápio também oferecesse filmes árabes, do Irã, enfim, pra que acessássemos também como eles veem o mundo e não como israelenses o enxergam por eles. 

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