segunda-feira, 18 de setembro de 2017

CAIXA DE MÚSICA 283


Roberto Rillo Bíscaro

Ano passado, revistas online hipsters, como Pitchfork e Consequence of Sound entoaram loas à Jamila Woods, cujo LP de estreia apareceu na lista de melhores das também descolados Spin e Pop Matters. Em se tratando duma cantora de Neo Soul/R’n’B isso incendiou minha curiosidade, afinal sou meio metido a hipster, de vez em quando. Ouvi alguma coisa de HEAVN, no SoundCloud e enlouqueci quando vi o vídeo de Blk Girl Soldier – que voz, que letra, que arranjo! Mas, se passaram muitos meses até que finalmente consegui botar os ouvidos em HEAVN, inteirinho, pra ouvir no fone de ouvido, prestando bem atenção.
Jamila Woods é atuante poeta, cantora e agitadora cultural independente – pelo menos era na época do lançamento de HEAVN, em julho de 2016 – de Chicago, metrópole que ganha mais destaque pela criminalidade e pelo vento, do que pela potencialidade de seus artistas e sua beleza. Não poucos norte-americanos, a chamam de “New York without an atitude”. Woods quis traçar panorama identitário da afrodescendência e também prestigiar os músicos de sua cidade. Conseguiu ambos objetivos e mais.
Apesar de multiproduzido e com referências caleidoscópicas - hip hop, trap, quase qualquer sub-estilo de soul/R’n’B, jazz, folk, indie pop são as mais evidentes – HEAVN é de consistência sônica e de qualidade de impressionar. As 13 faixas são excelentes, assim, compensa mais comentar o disco no atacado e não no varejo, até porque em termos estilísticos, as influências estão moídas e os farelos recombinados pra moldar um som moderno, descolado e elegante pra chuchu.
Quem entende inglês ganhará um “plus à mais”, porque as letras são sacadas poéticas sobre violência policial; aceitação da negritude; fetichização da negra como objeto animalesco de sexualidade; problema em aceitar a própria pele, clareando; timidez como forma de ficar longe de problemas, porque implica não envolvimento. Mas, também há a linda letra sobre memória, de Breadcrumbs – as migalhas de pão pedidas como marcador do caminho – onde ela canta que a avó amava seu avô, mesmo quando este já não mais se recordava quem era sua família. O político e o pessoal intercalando-se em letras que jamais dão a sensação de “aulas”.
Mas, como dito, isso seria adendo, porque se você não manja inglês, a belezura das canções e da doce voz de Jamila bastarão mais do que demais. Doçura, sim, porque apesar de toda constatação da opressão experienciada até hoje pelos afrodescendentes, HEAVN jamais escolhe o tom da raiva traduzida em vocais duros ou arranjos ásperos. É tudo bem melódico e leve. Também não há ódio ao reverso, isto é, claro que os brancos têm sido responsáveis por séculos de injustiças, mas Woods não hesita em pinçar o que presta dessa cultura. A própria faixa-título cita e brinca com a letra e melodia de Just Like Heaven, do branquelo inglês The Cure.

Jamila Woods e seus colegas artistas de Chicago lapidaram um álbum antenado, acessível, lindo, ativista, esperançoso, sensível, invejável. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário