UM CACHORRO E UMA FAMÍLIA DESFEITA.
José
Carlos Sebe Bom Meihy
Para
meus netos: Manuela, Gabriel e Anna Elisa
Era um casal exemplar. Na altura dos 50 anos, com vivazes
filhos adolescentes, sempre sorrindo e dispostos, corriam na praia, saíam para passeios
no final de semana e tinham um cachorro simpático chamado Marley. Todos no
prédio gostavam deles e a admiração e apreço eram expressos nas escolhas, por
exemplo, para o comando de um ou outro nas reuniões de condomínio, ou nas
decisões comunitárias. Nunca se ouviu uma queixa deles, ou sequer um comentário
negativo sobre o comportamento do cão que, na verdade, era o complemento perfeito
para o clichê da “família-margarina”. Pois bem, um belo dia a notícia caiu como
uma bomba que, sem piedade, atingiu o equilíbrio dos moradores vizinhos:
decidiram se separar.
Como rastilho de pólvora, a notícia se espalhou causando
espanto e até indignação, pois, afinal, como aqueles quase anjos, modelos
exemplares, iam se deixar? Juntei minha indignação a dos demais moradores e
precisei tomar fôlego para não acrescentar esse evento à soma de desgraças que
se nos abatem como cidadãos brasileiros: crise política; financeira; moral;
depravação ética, escândalos institucionais, homofobia, feminicídio... Houve um
segundo momento na intimidade coletiva dos vizinhos: como vai ser agora?
Alguém, um deles, continuará no prédio? E os filhos, com quem ficarão? Como se
tratasse do primeiro casal da Terra a se separar, os comentários ganharam
colorações que abalaram a tranquila aparência comunitária. Alguém despertou
suspeita que envolvia moradora nova, moça bonita e recém-formada em
veterinária. Pronto, estava dada a largada para uma historinha que progredira
velozmente. O “senhor” se apaixonou pela vizinha. “Mas, logo pela moradora do
mesmo prédio”?, questionou um morador do andar de baixo. A senhora do andar de
cima foi criativa e lembrou-se que um dia Marley passou mal e ele, o pai, foi
até o apartamento dela em busca de socorro para o cão. Esse fato provável, logo
virou a chave para um drama que ganhava tons de caso novelesco.
Tudo corria solto e cheio de alternativas até que alguém
lançou uma pergunta realmente inquietante: e o Marley, com quem ficará? Nossa!...
O tema virou questão social, moral e cívica e mesmo de direito dos animais.
Ficava claro que os filhos ficariam com a mãe, de acordo com a tradição
brasileira. E quanto a isso não restava dúvidas pois, além de tudo, ela havia
se convertido em espécie de vítima de uma cilada amorosa. Corroborava com a
imagem de atraiçoada a discrição que manteve, inclusive quando subia ou descia
no elevador com os demais condôminos, que antes a viam sempre sorridente. Não
preciso dizer que a tal veterinária, a “outra”, foi desprezada por (quase)
todos e que sobre ela pesou uma sensação ruim, algo que a aproximava de uma
Messalina reinventada em Copacabana. Ele, o senhor, viu encolhidos os
cumprimentos antes dadivosos e também se fechou chegando a esbarrar no mal
visto. Restou aos filhos a piedade dos olhares gerais. Mas o que aconteceria
com Marley?
Foi assim que a população do prédio começou a considerar
o papel do cachorro na separação do casal: coitado do cãozinho que, mesmo sendo
de porte médio para grande, mereceu a referência no diminutivo. Uns achavam que
Marley deveria ficar, junto da mulher e dos filhos. Os argumentos eram
taxativos, pois ele era da família e quem estava deixando tudo era o pai. Uma
minoria, contudo, com ênfase, insistia que deveria ir com o pai porque ele
deixaria com a mulher os filhos e os demais bens, e, certamente, a presença do
cão o ajudaria na nova vida. As contendas se acirraram e, sinceramente,
acredito que o cãozinho (veja que já me posicionei) parecia sintetizar a
aflição generalizada. Quando aparecia em público, notadamente nas áreas comuns
do prédio, Marley nos olhava com enternecida angústia e, com a língua para fora,
pedia justiça.
Há um detalhe que, talvez, possa enriquecer a compreensão
do contexto que ambientou o caso: o escândalo dos irmãos Batista, os tais
delatores da Lava-jato. Pois bem, nem isso superou o ibope dos comentários do
prédio. O destino de Marley era muito mais importante. Sem comparação. Como
todo processo de desligamento marital, o relatado nesta crônica, obedeceu ao
ritual da saída o marido. Soube-se que ele levou suas malas numa madrugada, sem
se despedir dos amigos. Meses depois, também sem noticiar nada a ninguém a tal
veterinária se mudou. Por lógico, não faltaram ilações... Como se esperava, a
mãe ficou com os filhos no apartamento, e Marley também. Foi com muita
apreensão que toda a comunidade acompanhou a rotina de pais de fim de semana.
Religiosamente, a cada sexta-feira à noite o pai buscava os filhos... Só os
filhos, Marley não ia junto. Pobre Marley. Concordo com o veredito comunitário:
o cãozinho tomou partido e resolveu escolher a mãe. Quer exemplo mais
humanizado? Como sempre acontece com amigos que se separam, temos que optar com
quem vamos prosseguir com a amizade. No nosso caso, Marley facilitou a escolha.
“Os cães são o nosso elo com o
Paraíso. Eles não conhecem a maldade, a inveja ou o descontentamento. Sentar-se
com um cão ao pé de uma colina numa linda tarde, é voltar ao Éden onde ficar
sem fazer nada não era tédio, era paz."
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