A ARTE DE
PERDER O PRAZER
José Carlos Sebe Bom
Meihy
Uma das mais
complicadas consequências do conhecimento formal nos dias de hoje é que de
repente deixamos de ser público para nos tornar analistas, exegetas ou
decifradores do mundo. A tudo, temos que analisar, conferir, comparar e dar
opinião e emitir juízos fundamentados. E cresce como erva daninha o culto às
ciências e à racionalidade. De fora, ficam as paixões, a fala desprendida, a
opinião simples e despretensiosa. Isso, aliás, invadiu todos os territórios
expressivos. Até o campo artístico se “logicizou”, virou tema de estudos.
Convém lembrar que isso é uma traição, pois na raiz a “escola” helênica queria
dizer ócio. Sim, apregoava-se na Grécia clássica que os sábios deveriam ter
tempo “ocioso” para pensar e usufruir do conhecimento. Mas, humanos que somos,
temos o dom de complicar tudo e assim deixamos de sentir em profundidade, sem
filtros explicativos censores da espontaneidade. E a isso chamamos educação.
Talvez, de
todas as artes, a música seja a menos exigente, aquela que, ainda, nos deixa flanar
pela sensibilidade. Por lógico, levo em conta a passividade do ouvinte, e não
da exigência apurada dos executores virtuoses. Pois é, com imensa saudade,
lembro-me do tempo em que ia ao cinema para me distrair e, com pipoca ou
amendoim, permitia me perder em histórias de bandidos e mocinhos, de viagens
interplanetárias, super-heróis e mesmo romances sonsos. Tudo mudou e muito. Na
medida em que crescemos precisamos saber mais sobre o modo de produção de
peças, a biografia dos autores, o custo das montagens, a opinião dos
críticos... E haja jornais, ensaios, resenhas, comentários, análises, enfim, um
intrincado processo de contextualizações rouba-nos o simples prazer de ir e
ver, de gostar ou não. Sobre tudo temos que ter uma opinião abalizada e um
posicionamento atualizado e nada de jogar conversa fora.
Em minha
intimidade, tenho lutado muito contra essas exigências qualificadoras das
diversões. Busco não me enquadrar, e até me dar ao luxo de gostar de uma pintura
pela alegria de ver a composição, o tema, as soluções estilísticas, tudo sem
relacionar com escolas, séries do autor, com a proposta do museu. Sem me
contradizer, gostaria de afirmar minha vocação “minimalista”, explorar a
catarse permitida pelo momento, independente de inscrição em processos
reflexivos. É lógico que não fujo da condenação da “arte pela arte”, mas
confesso que estou exaurido da suposição processual e das leituras abalizadas.
E por falar em leitura, toda essa conversa decorreu de um texto instigante. O
escritor japonês Yassunari Kawabata produziu um conto que muito mexeu comigo.
Sob o nome de “Yumiura”, um escritor já maduro na idade, recebe a visita
surpresa de uma senhora que animadamente lembra-o de tê-lo conhecido há mais de
30 anos. Segundo o animado relato da visitante, eles teriam se conhecido no
porto da cidade que dá nome ao relato, e teriam se apaixonado, ao ponto do
então jovem pedir a moça em casamento. Estarrecido, o escritor não conseguia se
lembrar desse episódio, e isso o angustiava deveras, pois, como poderia ter
apagado da mente um caso tão importante, uma paixão e pedido de casamento?
Recolhido em si mesmo, o escritor fez um exame minucioso, e constatou uma série
de outros esquecimentos. Costurando um caso com o outro, um apagamento aqui e
outro acolá, tudo ia sendo creditado à senilidade. Mas o caso alarmou tanto o
escritor que, inconformado, resolveu investigar melhor o caso. Passados dias de
pesquisas em guardados, depois de juntar fatos, após rever agendas, anotações e
questionar seus compromissos, chega à conclusão que lhe era impossível ter
estado nos dias, locais, festividades relatadas com detalhes tão vivos. Por
outro lado, a senhora também estava segura do que dizia e insistia na narrativa
devaneadora. O conto termina com cada um garantindo sua posição, mas ambos com
a certeza de seus fatos.
Pois é,
bastou a leitura desse caso para sair da leitura e traduzir o fato da memória
falha ou fantasiosa para minha vida pessoal... E da vida pessoal para estudos
sobre a memória foi salto rápido. Primeiro pensei em tantos episódios apagados da
memória. Supus também atos de delírios de casos que me implicavam, situações
das quais nunca integrei. E logo estava retomando Freud, Bergson, Pollak,
Proust, Portelli... E vi que não tenho como sair da teia que fiei para mim
mesmo.
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