segunda-feira, 16 de outubro de 2017

CAIXA DE MÚSICA 287


Roberto Rillo Bíscaro

Como tantas negras norte-americanas, Lizz Wright começou cantando na congregação onde seu pai era pastor e diretor musical, no sulista estado da Georgia. E é pra homenagear essa região – controversa por seu racismo e separatismo latentes – que a jazzista escolheu as 10 canções de Grace, lançado pelo selo Concord, dia 15 de setembro. O trabalho reúne uma inédita e 9 regravações, de gente que vai de Ray Charles a Bob Dylan (a baladaça country Every Grain Of Sand, já gravada por Emmylou Harris) até kd lang (a balada meio anos 40 Wash Me Clean). Wright não teme cobrir material consagrado por lendas como Billie Holiday: confira o madrigal de cordas superpersonalizado que criou em Stars Fell On Alabama.
A Graça evocada pelo título está em todas as faixas, mesmo quando as letras não tematizam sobre religião, afinal, Grace não é álbum gospel e Wright é intérprete secular. Mas, o clima de spiritual e de louvor ou perdão também tem tudo a ver com a tradição sulista das igrejas negras entoando canções que originaram o rock’n’roll, dentre outros petiscos musicais do século XX, que tornaram a música norte-americana a mais influente do planeta.
Dona de caixa torácica que facilmente permitiria berreiro sem fim (delícia, amo!), Lizz usa seu potente registro grave de forma mais calma, mas marcante. Sua voz tem tom de terra quente e molhada; fértil pra fazer brotar a cevada (Barley) no R’n’B que abre o LP. Isso, somado a arranjos dispensadores de qualquer modismo de produção, faz com que Grace soe ainda mais telúrico; marca registrada da tradicionalista Lizz Wright, vide o LP anterior, Freedom & Surrender, resenhado aqui.
A única inédita, o country emocionante de All The Way Here, encerra o álbum e dá vontade que a cantora componha mais e lance LP só de novidades. Mas, mesmo que Wright se dedique a regravar, não há do que reclamar quando os coros gospel poderosos se erguem em canções como Seems I’m Never Tired Lovin’ You ou quando o secular que originou o rock se infiltra na guitarra inquieta do spiritual R’n’B de Sining In My Soul. E quer melhor pra provar que o sul norte-americano tem muito mais do que atraso do que a quase hipnótica Southern Nights?
Com nenhuma nota ou arranjo fora do lugar, Grace deixa o ouvinte em puro estado de Graça.

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