ALLONS ENFANTS DE LA PATRIE...
José Carlos Sebe Bom Meihy
Atravessamos dias difíceis, não resta dúvida alguma. E ninguém está isento. Em momentos instáveis, por certo, é complicado manter o equilíbrio, não perder o juízo. Tenho aprendido, com mais pacientes, que nas instabilidades, em último caso, é melhor ficar quieto, observar e filtrar palavras que apenas devem ser pronunciadas em caso de oportunidade. Confesso que, como dizem os mais jovens, “ando cabreiro”. De tal maneira tenho me calado que temo somatizar situações culturais que fazem mal à saúde. Na contramão de tantos interditos, troco ideias com pessoas afinadas, pares de ideias e percepções, seres abertos à criatividade, gente sem ódio. Escrever me é outro elixir, e perturbo a brancura das páginas com protestos surdos, tristes, desiludidos, de uma intimidade sofrida.
Sim, dói-me muito ver amigos queridos, pessoas que historicamente fazem parte de meu universo afetivo, valendo-se de redes sociais, exarando laivos autoritários, repetindo jargões cansados e até aplaudindo tendências políticas ultraconservadoras. Nesses labirintos sem saída, contudo, uma alternativa me consolou: hierarquizar em registros minhas mágoas, mas não para guardá-las em páginas pessoais, mas, pelo reverso, publicar meus desabafos, provocando assim diálogos menos verborrágicos. Por questão de espaço, vou poupar leitores da fartura de queixumes. Enumero apenas dois pontos que, no momento, me são os mais intrigantes. O curioso é que ambos se emendam, completando-se por explicativos que são.
O primeiro fere minha sensibilidade de professor, historiador, pai/avô, cidadão que aprecia arte, busca museus e exposições. Sim, vou falar mal do veto grassado por “autoridades” que, inclusive fora do círculo da própria competência, sem educação cultural mínima, censuraram a exposição “Queermuseu”, e alimentaram, com suas atitudes grotescas, um dos mais vexatórios atos de censura. Gostaria de ir mais a fundo nos argumentos que se emendam ao de tantos outros defensores da arte como forma de expressão livre e democrática. Neste sentido, mais do que adjetivar ignorantes, gostaria de dizer que arte é um código expressivo que ganhou linguagem universal por ser cumulativo, cultivado por crítica especializada, transmitido em favor da beleza. Basta pensar nas primeiras inscrições das cavernas, nos desenhos e afrescos gregos, na estatuária romana, nas referências cristãs que divinizaram o corpo de Cristo nu, na beleza das madonas com seios fartos, no vislumbre erótico das referências mitológicas, nas dimensões dadas pelo romantismo que colocou nuas ninfas, pessoas comuns, deuses e deusas, no impressionismo libertário das cores, no atrevimento modernista, em tudo enfim, para ver que a arte encanta e educa. E mesmo contra a ação inquisitorial, hitleriana ou stalinista, a arte fez circular o bom ar do prazer visual e da comunicação social. Os maquinários modernos, a fotografia e o cinema, por sua vez integraram o âmbito difusor do gosto, afinando sentidos.
Como não poderia deixar de ser, o mundo avesso também se eternizou e assim, principalmente pela negação de todos os aparatos da arte, a pornografia tomou o lugar da beleza erótica e os mais incultos, aqueles de corações sujos, os de mente imunda, fariseus vestidos de pastores, exercitaram a ignorância dando vazão ao que escondem em suas almas danadas. Confundir erotismo com pornografia é distorção imperdoável, ainda que se torne prática censora poderosa. O pior é que fazem isso em nome da família, sem explicar, contudo, de que família falam (certamente das deles). E não bastasse, investem na educação como guardiões do conhecimento, como se o saber pudesse ser crivado e pecaminoso. É importante repetir que estamos habituados, culturalmente, às exposições nas praias, na televisão, nas ruas, e, pelo inverso, ir a museu é ato de escolha. Que não venham, portanto, fundamentalistas dizer que quem quer não pode optar para onde levar seus filhos. E os filhos, por que não deixá-los admirar a beleza visual refinada? Será que devemos esperar que eles aprendam como os pais que veem o mal em tudo?
Complemento do primeiro item, o outro afeta a escola. Devemos condenar o fundamentalismo religioso com força e nos indignar com a permissão do ensino religioso. Sem temor, precisamos ver que um bando de legisladores, obscurecidos pelo viés autoritário, se converteu em “bancada política”, e tem ganhado força desmedida. Às vezes às claras, outras travestidos de normalidade, saídos das igrejas, adentram setores do poder legislativo e, como rapinas, ferem direitos e se esforçam por limitar olhares que, afinal, por inteligentes e livres, podem virar contra eles. É preciso recobrar a Constituição e advogar o direito à livre expressão, à crítica, à criatividade. Demorou para que conseguíssemos ser um estado laico. Ainda que nossa depauperada educação pública esteja mal, não cabe gastar mais dinheiro colocando o ensino religioso como matéria de formação. Por neutros que sejam os professores, não é correto (nem honesto) substituir conteúdos que cuidem de maneira objetiva de direito ambiental, das diferenças sociais, dos segmentos deprimidos pelo sistema injusto.
Cabe, finalmente, reclamar contra os valores políticos coloridos pelos devotos da censura. Esta matéria não se polariza em esquerda ou direita. Em ser simpático a este ou àquele sistema. Nada disso. Trata-se, isso sim, de respeito a princípios discutíveis, debatidos em arenas livres, acima de vetos, sanções, censura. Trata-se sobretudo em substituir dogmas pela inteligência. Vamos... Vamos fazer como alguns museus parisienses que convidam os filhos para levar os pais para ver exposições de arte. Entendo melhor agora a primeira frase da Marselhesa: allons enfants de la patrie... Vamos crianças da pátria... Vamos levar os pais fundamentalistas para os museus... Quem sabe eles se convertem à beleza e deixem livre o céu da inteligência. Quem sabe?!...
Nenhum comentário:
Postar um comentário