Roberto Rillo Bíscaro
Antohony Trollope não gostava de Evangélicos, subdivisão
do protestantismo desde o século XVIII mais ou menos e que hoje se espalha
mundo afora. Não é de admirar, portanto, que a revista Good Words tenha
recusado publicar Rachel Ray (1863), quando leu o material encomendado ao
escritor inglês, que apresenta as personagens evangélicas como intolerantes,
mercenárias e amargas. Mas, claro que havia também que se aprofundar na
desonrosa guerra travada entre as diversas seitas protestantes na Inglaterra do
século XIX pra se ter chão mais sólido pra compreender a recusa do editor, que
temia ser “fervido vivo” com a publicação. Pesquisar sobre essa encarniçada
luta por detrás dos púlpitos, poderia colocar em xeque muito do que se prega
neles.
Como Trollope estava quase no pico de sua fama, não foi
difícil vender Rachel Ray pra outra editora e até faturar mais do que com a
Good Words, pra qual não parou de colaborar. Trollope era prolífico, da vasta
gama de escritores profissionais mesmo, atacado na época por ser dinheirista
por setores cristãos rivais à revista. Ele vivia de vender sua escrita, mesmo
que fosse pra quem não apreciasse.
Como esses escribas produziam literalmente em série, o
nível artístico varia. Rachel Ray não figuraria entre o melhor de Trollope, mas
é correta, embora escapa-me como leitores contemporâneos não fãs de século XIX
ou estudando algo correlato poderiam se envolver pelo romance. Imagine uma
garota de hoje deparando-se com um dos dilemas da personagem-título: deixar ou
não o pretendente chamá-la pelo primeiro nome.
Um dos interesses da história é que muito dela foca na
classe média baixa, bastante ausente das obras eleitas como cânone da
literatura britânica. Tem “mama” e “papa”, não se preocupem, mas tudo se passa
na pequena e provinciana Baselhurst, onde existe a cervejaria dos Tappitts,
gente que veio de baixo, ralando, o que Trollope indica pelos ocasionais
deslizes da norma culta, do casal nada simpático. É don’t no lugar de doesn’t e
verbo to be empregado erroneamente. Os Tappitts têm 4 filhas e ficam esperançosos
de casar alguma com Luke Rowan, afluente londrino que chegou a aldeia por ter
direito sobre parte da cervejaria. Mas, o jovem se engraça por Rachel Ray, moça
bem classe média baixa, que vive fora da urbe e tem amizade com campesinos.
O núcleo de Rachel é formado pela mãe irritantemente
maria-vai-com-as-outras e pela devota irmã Dorothea, evangélica daquelas que
acreditam ser necessário ser infeliz na terra pra ganhar a felicidade no céu. O
narrador não deixa de acusar a hipocrisia nesse discurso, uma vez que Dolly
enviuvara cedo e tal fervor salvacionista poderia muito bem ser resultante do
amargor da solidão. Tal rigor faz com que seja contrária ao interesse de Rowan
pela irmã, assim como quase todo o círculo – influenciado pela opinião de
pastores e pela opinião púbica de Baselhurst, que vê o forasteiro londrino com
maus olhos por querer modificar o método da produção da cerveja de péssima
qualidade produzida pelos Tappits.
Pra variar, isso que realmente me interessou em Rachel
Ray, o romance: Luke Rowan personifica o avançar inexorável da produção
capitalista, que advoga mais qualidade nos produtos pra atender melhor o
consumidor e pra vender mais (e é aqui que reside a ênfase, claro!). Devonshire
consumia mais cidra, produzida artesanalmente, do que a industrializada cerveja
dos Tappitts (do jeito que é descrita, quem poderia culpá-los?). Rowan vem com
a proposta de modernizar a produção, manufaturar cerveja melhor e mais abndante
e assim alterar o padrão de consumo. Rachel Ray é bem eficaz em descrever, como
“pano de fundo”, como o modo de produção favorito dos meritocratas não permite
que a produção se “acomode”; as alianças que estabelece pra se impor e sobrepor;
como obsoletiza e constrói reputações e relacionamentos. Quando Baselhurst
percebe que lucraria com a modernização da cervejaria, Rowan passa a ser
queridinho bem rapidamente. Se eu estudasse romance da época, prestaria
especial atenção às alianças estabelecidas para a eleição.
Mas o que está na frente é a
história de amor de Rachel Ray, que, protagonista, não protagoniza nada, porque
vive de obedecer a mãe indecisa e todas as circunstâncias a ela impostas. Não a
odiemos, porém: a nobre Rachel é a pintura da mulher e futura esposa perfeitas,
que espera, que vai se submeter ao maridón,
assim como ora se resigna com a escolha da mãe pra que não dê corda pra Mr
Rowan. Também caracteristicamente, a inferioridade social e econômica de Miss
Ray é encarada como erro a ser corrigido. Seu inglês é perfeito, seus modos e
maneiras de classe mais elevada – ou o que se idealiza desse grupo. Pra esse
tipo de personagem na verdade não existe ascensão social – pura ilusão de ótica
ideológica – mas, uma espécie de recondução a seu lugar de mérito.
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