sexta-feira, 20 de outubro de 2017

PAPIRO VIRTUAL 117

Roberto Rillo Bíscaro

Antohony Trollope não gostava de Evangélicos, subdivisão do protestantismo desde o século XVIII mais ou menos e que hoje se espalha mundo afora. Não é de admirar, portanto, que a revista Good Words tenha recusado publicar Rachel Ray (1863), quando leu o material encomendado ao escritor inglês, que apresenta as personagens evangélicas como intolerantes, mercenárias e amargas. Mas, claro que havia também que se aprofundar na desonrosa guerra travada entre as diversas seitas protestantes na Inglaterra do século XIX pra se ter chão mais sólido pra compreender a recusa do editor, que temia ser “fervido vivo” com a publicação. Pesquisar sobre essa encarniçada luta por detrás dos púlpitos, poderia colocar em xeque muito do que se prega neles.  
Como Trollope estava quase no pico de sua fama, não foi difícil vender Rachel Ray pra outra editora e até faturar mais do que com a Good Words, pra qual não parou de colaborar. Trollope era prolífico, da vasta gama de escritores profissionais mesmo, atacado na época por ser dinheirista por setores cristãos rivais à revista. Ele vivia de vender sua escrita, mesmo que fosse pra quem não apreciasse.
Como esses escribas produziam literalmente em série, o nível artístico varia. Rachel Ray não figuraria entre o melhor de Trollope, mas é correta, embora escapa-me como leitores contemporâneos não fãs de século XIX ou estudando algo correlato poderiam se envolver pelo romance. Imagine uma garota de hoje deparando-se com um dos dilemas da personagem-título: deixar ou não o pretendente chamá-la pelo primeiro nome.
Um dos interesses da história é que muito dela foca na classe média baixa, bastante ausente das obras eleitas como cânone da literatura britânica. Tem “mama” e “papa”, não se preocupem, mas tudo se passa na pequena e provinciana Baselhurst, onde existe a cervejaria dos Tappitts, gente que veio de baixo, ralando, o que Trollope indica pelos ocasionais deslizes da norma culta, do casal nada simpático. É don’t no lugar de doesn’t e verbo to be empregado erroneamente. Os Tappitts têm 4 filhas e ficam esperançosos de casar alguma com Luke Rowan, afluente londrino que chegou a aldeia por ter direito sobre parte da cervejaria. Mas, o jovem se engraça por Rachel Ray, moça bem classe média baixa, que vive fora da urbe e tem amizade com campesinos.
O núcleo de Rachel é formado pela mãe irritantemente maria-vai-com-as-outras e pela devota irmã Dorothea, evangélica daquelas que acreditam ser necessário ser infeliz na terra pra ganhar a felicidade no céu. O narrador não deixa de acusar a hipocrisia nesse discurso, uma vez que Dolly enviuvara cedo e tal fervor salvacionista poderia muito bem ser resultante do amargor da solidão. Tal rigor faz com que seja contrária ao interesse de Rowan pela irmã, assim como quase todo o círculo – influenciado pela opinião de pastores e pela opinião púbica de Baselhurst, que vê o forasteiro londrino com maus olhos por querer modificar o método da produção da cerveja de péssima qualidade produzida pelos Tappits.
Pra variar, isso que realmente me interessou em Rachel Ray, o romance: Luke Rowan personifica o avançar inexorável da produção capitalista, que advoga mais qualidade nos produtos pra atender melhor o consumidor e pra vender mais (e é aqui que reside a ênfase, claro!). Devonshire consumia mais cidra, produzida artesanalmente, do que a industrializada cerveja dos Tappitts (do jeito que é descrita, quem poderia culpá-los?). Rowan vem com a proposta de modernizar a produção, manufaturar cerveja melhor e mais abndante e assim alterar o padrão de consumo. Rachel Ray é bem eficaz em descrever, como “pano de fundo”, como o modo de produção favorito dos meritocratas não permite que a produção se “acomode”; as alianças que estabelece pra se impor e sobrepor; como obsoletiza e constrói reputações e relacionamentos. Quando Baselhurst percebe que lucraria com a modernização da cervejaria, Rowan passa a ser queridinho bem rapidamente. Se eu estudasse romance da época, prestaria especial atenção às alianças estabelecidas para a eleição.
Mas o que está na frente é a história de amor de Rachel Ray, que, protagonista, não protagoniza nada, porque vive de obedecer a mãe indecisa e todas as circunstâncias a ela impostas. Não a odiemos, porém: a nobre Rachel é a pintura da mulher e futura esposa perfeitas, que espera, que vai se submeter ao maridón, assim como ora se resigna com a escolha da mãe pra que não dê corda pra Mr Rowan. Também caracteristicamente, a inferioridade social e econômica de Miss Ray é encarada como erro a ser corrigido. Seu inglês é perfeito, seus modos e maneiras de classe mais elevada – ou o que se idealiza desse grupo. Pra esse tipo de personagem na verdade não existe ascensão social – pura ilusão de ótica ideológica – mas, uma espécie de recondução a seu lugar de mérito. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário