Roberto Rillo Bíscaro
No momento em que o narrador de Uma Beleza Fantástica
(2016) inicia, contando a estapafúrdia gênese de Bella Brown (criada por patos,
dá um tempo!), conectei-o à O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001). Por
pertencer à rarefeita minoria que prefere extração dentária a rever o
excessivamente longo, tedioso e sacarinado filme francês, deveria ter dado stop, classificado negativamente e
buscado outra coisa na Netflix. Tom Wilkinson em papel proeminente me impediu
essa sábia atitude e terminei por testemunhar a sensaboria do roteiro e direção
do britânico Simon Aboud, que implora pra que simpatizemos e nos emocionemos
com essa picaretagem, digo, “releitura” inglesa do original francês.
Jessica Brown Findlay (a desviante Lady Sybil de Downton Abbey) é Bella, moça que parece ter caso severo de TOC e fobia de animais e
plantas. Trabalha numa biblioteca, onde chega sempre atrasada, e quer ser
escritora infantil. O vizinho é senhor rabugento, que trata seu cozinheiro
irlandês como escravo, fazendo-o rebelar-se e procurar refúgio na casa de
Bella. Ele tem 2 filhas, mas aceita cozinhar pra garota, mesmo que ela não o
pague. O jardim de Bella é um desastre, porque ela tem a tal fobia, mas seu
senhorio a ameaça com despejo caso não dê um jeito nisso. O velho vizinho,
então, revela-se mentor que guiará Bella pelo maravilhoso mundo da jardinagem,
metáfora pra seu florescimento, ao redor da qual giram todos os demais, a fim
de desabrochá-la.
Uma Beleza Fantástica se vende como “conto de fadas
moderno”, mas seu roteiro e estrutura são tão cheios de furos e o tema tão
clichê, que é uma ofensa à organicidade e telurismo das histórias que há
gerações falam sobre alguns de nossos medos (claro que não me refiro às versões
da Disney, de onde vem parte da mentalidade infantiloide da produção inglesa).
Protagonista é quem faz a trama andar; como classificar Bella se não faz nada? É comandada pelos homens a seu redor, que praticamente
deixam suas vidas pra empurrá-la do ninho.
O roteiro usa transtornos mentais como convenientes
marcadores simpáticos de estranheza, naquela vibe pós-moderninha “é legal
ser diferente”, de filme indie cuti cuti
tutti frutti. Mas Bella não passa de uma songa-monga mal-vestida, que nem
estofo pra escritora tem. O livro que escreve – ou vocês acham que não tem
final feliz?! – é rapinagem das histórias contadas pelo vizinho. E como
acreditar que um senhor que numa cena humilha gratuitamente um empregado, do
nada, veja potencial numa menina que nem conhece e comece a jorrar lições de
vida e bondade? E como um cidadão com 2 filhas pra sustentar aceitaria viver ao
redor de Bella, sem nem salário? A fim de satisfazer o vício atual por doçura,
Aboud criou história onde diversas vidas não têm significado, apenas pra
justificar uma (medíocre, ainda por cima). Hipocrisia narcisista, disfarçada de
coisinha fofa, ui ui, ai ai.
Não tenho dúvidas de que
multidões se encantarão com Uma Beleza Fantástica, mas isso nada significa,
afinal, o fato de legiões amarem junk
food não quita seu estatuto de lixo.
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