segunda-feira, 6 de novembro de 2017

CAIXA DE MÚSICA 290


Roberto Rillo Bíscaro

Quando The Queen is Dead (1986) completou 25 anos, a imprensa musical soltou fogos de artifício celebratórios. O britânico New Musical Express teve edição especial apenas sobre The Smiths e o disco. Nada mais justificável, afinal, Morrissey (voz e letras), Johnny Marr (guitarra), Andy Rourke (baixo) e Mike Joyce (bateria) inventaram um subgênero, o indie rock.
Quando apareceram, em 1982, a música pop era dominada por sintetizadores e personagens maquiados com cabelos mirabolantes. Marr veio com riffs intoxicantes, numa sucessão vertiginosa de canções memoráveis e Morrissey com letras lúgubres e ambíguas, além de visual que envolvia até óculos forneceidos pela assistência social inglesa, anos-luz do look Culture Club ou Duran Duran. O número de carreiras musicais inspiradas pela banda continua a multiplicar-se até hoje.
Apesar da importância, a indústria fonográfica esnobou a efeméride e o quarto de século da obra-prima dos Smiths passou batido. Ano passado foi o trigésimo aniversário e também nada.
Dia 20 de outubro, a Warner começou a corrigir a omissão em relançamentos remasterizados e expandidos da banda de Manchester. The Queen Is Dead saiu em edição super de luxo, com 3 CDs e um DVD, que traz o filme homônimo de Derek Jarman, mas que não faz parte do escopo deste texto.
O CD 1 traz o álbum original remasterizado. The Queen Is Dead é tão importante que impõe comentários faixa a faixa:
O álbum abre com a faixa-título, virulento, irônico e intelectualizado ataque à monarquia. Um coro de crianças cantando tema da época da Primeira Guerra Mundial dá lugar à bateria tribal de Joyce e em alguns segundos a metralhadora de Morrissey atira contra a rainha e a igreja em versos como “querido Charles, você às vezes não sente vontade de aparecer na primeira página do Daily Mail usando o véu de noiva de sua mãe?”. Típico Morrissey, a letra mistura preocupações sociais com a impossibilidade de discuti-las na chuva, para não estragar o cabelo. Os Smiths nunca estiveram tão próximos do heavy metal quanto nesta faixa. E a conclusão, em meio à guitarra pesada: “a vida é longa demais quando se é solitário”.
Frankly, Mr. Shankly é pérola de acidez music hall. Melodia brejeira traz a história de um empregado que detona o patrão metido a poeta. A ambiguidade morriseyana resplandece ora dizendo que quer entrar para a história da música, ora bombasticamente afirmando que preferiria escrever cartões de Natal com deficientes mentais a ser célebre. Dizem que a letra é “homenagem” ao presidente da Rough Trade, gravadora do grupo.
I Know It’s Over é das letras mais lancinantes e sinceras sobre solidão já escritas na música pop. O verso inicial diz ”oh mãe, sinto a terra caindo sobre minha cabeça” ao que se seguem alusões a suicídio, amores não-correspondidos ou inventados e questionamentos amargos sobre solidão: “se você é tão divertido, por que está só esta noite?/se você é tão esperto, por que está só esta noite?”. O instrumental inicialmente esparso avoluma-se seguindo o aumento do desespero e culmina na massa sonora acompanhando os berros de Morrissey, repetindo o verso de abertura. Sublime.
A barra continua pesada com Never Had No One Ever, onde o protagonista bate à porta de alguém para confessar que jamais teve ninguém e está sozinho, desesperadamente só. “Tive um pesadelo que durou 20 anos, 7 meses e 27 dias”. Uma vida. Sons de pranto juntam-se a melodia arrastada com instrumentação compacta.
Cemetery Gates apresenta melodia adorável com violão dedilhado e letra muito intelectualizada sobre plágio. Num “horrível dia ensolarado”, duas pessoas visitam um cemitério e leem lápides, discutindo sua autoria. Alguns críticos acusaram Morrissey de plágio, por usar trechos de outrem em suas letras, coisa que jamais ocultou ou negou. Seu ídolo Oscar Wilde fora acusado do mesmo pecadilho na sistemática campanha ao longo de décadas para diminuir sua genialidade. O vocalista dos Smiths elege o escritor irlandês como santo padroeiro e compõe letra muito inteligente alfinetando detratores.
A lindíssima Bigmouth Strikes Again abre com mortífero solo de violão dedilhado, que continua por toda a canção, que ainda traz baixo e bateria pulsantes e guitarra cortante, tornando-a locomotiva dançante. Morrissey recebera o epíteto de desbocado pela imprensa britânica e, quando um atentando à bomba num hotel matou membros do gabinete de Margareth Thatcher, mas não a Dama de Ferro, Mozz manifestou seu pesar por ela não ter voado aos pedaços. Face ao ultraje desencadeado pela declaração, o letrista destilou seu fel em versos como “doçura, eu estava apenas brincando quando disse que queria quebrar todos seus dentes/doçura, eu estava apenas brincando quando disse que você deveria ser coberta de porradas em sua cama”, para, em seguida, comparar-se a uma Joana D’Arc de walkman e aparelho de surdez derretendo, enquanto as chamas consomem seu corpo. É o Desbocado atacando outra vez!
The Boy With the Thorn in his Side talvez seja a canção dos Smiths mais conhecida no Brasil. Influenciada pelos Beatles, a letra funciona em diversos níveis, podendo ser lida pela via do homoerotismo abafado pela sociedade, que cria monstros em potencial, mas também como questionamento sobre o porquê a banda não fazia mais sucesso.  Faixa dá certa impressão de que os vocais estão meio desconectados da melodia, gravados em outra dimensão, meio que representando na forma a alienação tematizada. Conseguir que essa aparente desconexão forme todo adorável seja marca da genialidade da banda.
O clima rockabilly de Vicar in a Tutu, com sua guitarra totalmente jangling e sua letra divertida sobre ladrão que vê um vigário vestindo saia de balé e no dia seguinte pregando moral no púlpito é ataque corrosivo à hipocrisia.
Quando Morrissey apresenta-se no Brasil, e põe a canção na setlist, a plateia canta o refrão de There’s a Light That Never Goes Out em uníssono. Em todo canto é assim; nos países latinos – que amam Morrissey de paixão – é mais. Indubitavelmente clássico entre fãs, a maturidade nos faz superar o refrão. Não é prazer ou privilégio morrer esmagado por ônibus de dois andares ou caminhão de dez toneladas, nem que seja ao lado da pessoa amada. Mas, não há como não se emocionar com o arranjo de cordas e a letra sobre desejo de viver plenamente, mas não poder fazê-lo por medo, timidez ou opressão. Dramaticidade digna do Romantismo.
Só mesmo uma banda no auge de seu poder de fogo e autoconfiança para se dar ao luxo de não usar a faixa anterior para fechar o álbum em clima de estratosfera lírica apoteótica. Ao invés, o encerramento se dá com a melodia circular e de começo falso de Some Girls Are Bigger Than Others, com (outro!) achado guitarrístico de Johnny Marr. A letra é a mais leve de The Queen is Dead, sobre um cara que acaba de descobrir a única preocupação da humanidade desde o começo dos tempos: o tamanho dos seios. Pobre de quem não consegue perceber o banho de ácido sulfúrico candidamente cantado.
O CD 2 traz demos e lados B dos singles, além de uma versão estendida da faixa-título, que, mesmo sem a introdução do coro infantil da época da I Guerra Mundial, dura mais de sete minutos. Ideal para quando você deseja apenas a pauleira, sem o introito lúdico.
Com relação aos lados B, mesmo no distante e atrasado Brasil, a maioria já havia saído nos anos 80, seja no 45 Rpm de The Boy With The Thorn In his Side, seja na coletânea The World Won’t Listen, versão empobrecida do então duplo Louder Than Bombs. Assim, a única “novidade” para ouvintes tupiniquins que nunca puseram os ouvidos em edições gringas ou piratas é a instrumental Money Changes Everything, que, se não faz falta, é curiosa porque originou The Right Stuff, do álbum Bête Noire (1987), de Bryan Ferry. O ex-Roxy Music ouviu o lado B de Bigmouth Strikes Again e percebeu que se colocasse letra, teria hit nas mãos. Chamou seu fã Johnny Marr para tocar guitarra na faixa, que, claro, fez sucesso na versão podre de chique de Ferry. Mesmo conhecidas, é ótimo ouvir a canção de ninar suicida de Asleep ou o reggae de Rubber Ring em versões remasterizadas, além de em um contexto do qual realmente fazem parte.
Quanto às versões demo, o que salta aos ouvidos é a solidez da visão que Morrissey e Marr tinham com relação a como a banda deveria soar. Decepcionar-se-á quem espera versões bem diferentes daquelas da obra-prima. São apenas detalhes na letra ou arranjos, polidos por Marr, que não usava sintetizadores, mas gerava sofisticadas superposições de camadas de guitarra ou inclusão de efeitos como a voz de Morrissey em rotação alterada para obter aquela vozinha de fundo em Bigmouth Strikes Again, ausente na demo version. Até a aparente desconexão entre instrumentação e vocal de The Boy... se faz presente na demo. A crueza da versão preliminar de Frankly, Mr. Shankly revelará melhor ainda a sofisticação das cordas de Johnny Marr. Ouvida com fones, a demo soará como se o cara estivesse esbanjando linhas melódicas, porque é uma em cada ouvido. Brilhante.
A mudança mais radical entre demo e versão oficial de The Queen Is Dead é na faixa Never Had No One Ever, com quase o dobro do tempo e seção final cheia de metais dissonantes de free jazz. Como sabido, a versão do álbum dispensou isso em troca de camadas de efeitos e até simulação de choro, muito mais em sintonia com o estado mental do narrador, deprimido e envergonhado com tanta solidão. Além disso, na demo, Morrissey “dialoga” com o pistão, que é até meio sexy. Mas, para isso os anos 80 já tinham Jimmy Sommerville e o próprio Mozz já soltara a franga na gritaria em falsete de Miserable Lie, do primeiro LP.
O CD 3 traz a apresentação ao vivo em Boston, do dia 5 de agosto de 1986. Dá pra entender que os curadores desejavam manter a mesma qualidade de som e apresentar um show inteiro, mas quase metade das 13 canções já fora lançada oficialmente ao vivo, no LP Rank (1988). Seria muito mais aproveitável se versões ao vivo de Frankly, Mr. Shankly e Meat Is Murder estivessem no lugar de Rubber Ring/What She Said e Is It Really So Strange, por exemplo.
Os Smiths se recusaram a usar sintetizadores, mas Johnny Marr jamais teve pudores em tratar o som de sua guitarra, sobrepondo-a em camadas. Isso fazia com que a experiência ao vivo fosse mais crua do que a de estúdio. Pra viciados na pureza experimental de estúdio, como este resenhista, os Silvas resultavam menos fascinantes no palco, ainda que lá demonstrassem ser feroz banda de rock. A competência do quarteto era tamanha que agrada7vam as 2 facções. Mesmo ao vivo, nós amantes de estúdio não podemos reclamar de tudo. Em turnês, a banda empregava Craig Gannon como segundo guitarrista, então, Marr até consegue semi-reproduzir a hipnose circular do arranjo de How Soon Is Now. Pra quem ama visceralidade roqueira, confira a demolição de The Queen Is Dead.
Os Smiths alcançaram seu pico de criatividade com The Queen is Dead e um par de singles subsequentes indicava que a usina de boas ideias ainda geraria muita energia.
Ledo engano. As datas finais da turnê do clássico foram canceladas por exaustão e porque as tensões já eram insuportáveis. Menos de um ano depois de The Queen Is Dead, os Smiths se desintegraram, levando a uma mini-onda de suicídios na Inglaterra e Japão (sério!).
Quando Strangeways, Here We Come saiu, em setembro de 87, o grupo não mais existia. Talvez tenha sido melhor assim, visto que o canto do cisne não alcançou a qualidade do material anterior.
Seguiu-se feia e sangrenta batalha judicial por direitos autorais. Frustrações, exaustão, drogas, alcoolismo, falta de empresário mais competente foram algumas das razões dadas por diferentes membros para explicar o fim de uma era.
Quaisquer que tenham sido as razões para o fim dos Smiths, o que realmente importa é que é deles o Sgt. Peppers do indie rock. Realizando o desejo expresso na letra de Frankly, Mr. Shankly, Morrissey, Marr, Rourke e Joyce entraram para a história da música.

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