Roberto Rillo Bíscaro
Quando The Queen is Dead (1986) completou 25 anos, a
imprensa musical soltou fogos de artifício celebratórios. O britânico New
Musical Express teve edição especial apenas sobre The Smiths e o disco. Nada
mais justificável, afinal, Morrissey (voz e letras), Johnny Marr (guitarra),
Andy Rourke (baixo) e Mike Joyce (bateria) inventaram um subgênero, o indie
rock.
Quando apareceram, em 1982, a música pop era dominada por sintetizadores e personagens maquiados com cabelos mirabolantes. Marr veio
com riffs intoxicantes, numa sucessão vertiginosa de canções memoráveis e
Morrissey com letras lúgubres e ambíguas, além de visual que envolvia até
óculos forneceidos pela assistência social inglesa, anos-luz do look Culture Club ou Duran Duran. O número de carreiras musicais inspiradas pela banda
continua a multiplicar-se até hoje.
Apesar da importância, a indústria fonográfica esnobou
a efeméride e o quarto de século da obra-prima dos Smiths passou batido. Ano
passado foi o trigésimo aniversário e também nada.
Dia 20 de outubro, a Warner começou a corrigir a
omissão em relançamentos remasterizados e expandidos da banda de Manchester.
The Queen Is Dead saiu em edição super de luxo, com 3 CDs e um DVD, que traz o
filme homônimo de Derek Jarman, mas que não faz parte do escopo deste texto.
O CD 1 traz o álbum original remasterizado. The Queen
Is Dead é tão importante que impõe comentários faixa a faixa:
O álbum abre com a faixa-título, virulento, irônico e intelectualizado
ataque à monarquia. Um coro de crianças cantando tema da época da Primeira
Guerra Mundial dá lugar à bateria tribal de Joyce e em alguns segundos a
metralhadora de Morrissey atira contra a rainha e a igreja em versos como
“querido Charles, você às vezes não sente vontade de aparecer na primeira
página do Daily Mail usando o véu de noiva de sua mãe?”. Típico Morrissey, a
letra mistura preocupações sociais com a impossibilidade de discuti-las na
chuva, para não estragar o cabelo. Os Smiths nunca estiveram tão próximos do
heavy metal quanto nesta faixa. E a conclusão, em meio à guitarra pesada: “a
vida é longa demais quando se é solitário”.
Frankly, Mr. Shankly é pérola de acidez music hall. Melodia
brejeira traz a história de um empregado que detona o patrão metido a poeta. A
ambiguidade morriseyana resplandece ora dizendo que quer entrar para a história
da música, ora bombasticamente afirmando que preferiria escrever cartões de
Natal com deficientes mentais a ser célebre. Dizem que a letra é “homenagem” ao
presidente da Rough Trade, gravadora do grupo.
I Know It’s Over é das letras mais lancinantes e
sinceras sobre solidão já escritas na música pop. O verso inicial diz ”oh mãe,
sinto a terra caindo sobre minha cabeça” ao que se seguem alusões a suicídio,
amores não-correspondidos ou inventados e questionamentos amargos sobre
solidão: “se você é tão divertido, por que está só esta noite?/se você é tão
esperto, por que está só esta noite?”. O instrumental inicialmente esparso
avoluma-se seguindo o aumento do desespero e culmina na massa sonora
acompanhando os berros de Morrissey, repetindo o verso de abertura. Sublime.
A barra continua pesada com Never Had No One Ever, onde
o protagonista bate à porta de alguém para confessar que jamais teve ninguém e
está sozinho, desesperadamente só. “Tive um pesadelo que durou 20 anos, 7 meses
e 27 dias”. Uma vida. Sons de pranto juntam-se a melodia arrastada com
instrumentação compacta.
Cemetery Gates apresenta melodia adorável com violão
dedilhado e letra muito intelectualizada sobre plágio. Num “horrível dia
ensolarado”, duas pessoas visitam um cemitério e leem lápides, discutindo sua
autoria. Alguns críticos acusaram Morrissey de plágio, por usar trechos de
outrem em suas letras, coisa que jamais ocultou ou negou. Seu ídolo Oscar Wilde
fora acusado do mesmo pecadilho na sistemática campanha ao longo de décadas para
diminuir sua genialidade. O vocalista dos Smiths elege o escritor irlandês como
santo padroeiro e compõe letra muito inteligente alfinetando detratores.
A lindíssima Bigmouth Strikes Again abre com mortífero
solo de violão dedilhado, que continua por toda a canção, que ainda traz baixo
e bateria pulsantes e guitarra cortante, tornando-a locomotiva dançante.
Morrissey recebera o epíteto de desbocado pela imprensa britânica e, quando um
atentando à bomba num hotel matou membros do gabinete de Margareth Thatcher,
mas não a Dama de Ferro, Mozz manifestou seu pesar por ela não ter voado aos
pedaços. Face ao ultraje desencadeado pela declaração, o letrista destilou seu
fel em versos como “doçura, eu estava apenas brincando quando disse que queria
quebrar todos seus dentes/doçura, eu estava apenas brincando quando disse que
você deveria ser coberta de porradas em sua cama”, para, em seguida,
comparar-se a uma Joana D’Arc de walkman e aparelho de surdez derretendo,
enquanto as chamas consomem seu corpo. É o Desbocado atacando outra vez!
The Boy With the Thorn in his Side talvez seja a canção
dos Smiths mais conhecida no Brasil. Influenciada pelos Beatles, a letra
funciona em diversos níveis, podendo ser lida pela via do homoerotismo abafado
pela sociedade, que cria monstros em potencial, mas também como questionamento
sobre o porquê a banda não fazia mais sucesso. Faixa dá certa impressão de que os vocais estão
meio desconectados da melodia, gravados em outra dimensão, meio que
representando na forma a alienação tematizada. Conseguir que essa aparente
desconexão forme todo adorável seja marca da genialidade da banda.
O clima rockabilly de Vicar in a Tutu, com sua guitarra
totalmente jangling e sua letra
divertida sobre ladrão que vê um vigário vestindo saia de balé e no dia
seguinte pregando moral no púlpito é ataque corrosivo à hipocrisia.
Quando Morrissey apresenta-se no Brasil, e põe a canção
na setlist, a plateia canta o refrão
de There’s a Light That Never Goes Out em uníssono. Em todo canto é assim; nos
países latinos – que amam Morrissey de paixão – é mais. Indubitavelmente
clássico entre fãs, a maturidade nos faz superar o refrão. Não é prazer ou
privilégio morrer esmagado por ônibus de dois andares ou caminhão de dez
toneladas, nem que seja ao lado da pessoa amada. Mas, não há como não se
emocionar com o arranjo de cordas e a letra sobre desejo de viver plenamente,
mas não poder fazê-lo por medo, timidez ou opressão. Dramaticidade digna do
Romantismo.
Só mesmo uma banda no auge de seu poder de fogo e
autoconfiança para se dar ao luxo de não usar a faixa anterior para fechar o
álbum em clima de estratosfera lírica apoteótica. Ao invés, o encerramento se dá
com a melodia circular e de começo falso de Some Girls Are Bigger Than Others,
com (outro!) achado guitarrístico de Johnny Marr. A letra é a mais leve de The
Queen is Dead, sobre um cara que acaba de descobrir a única preocupação da
humanidade desde o começo dos tempos: o tamanho dos seios. Pobre de quem não
consegue perceber o banho de ácido sulfúrico candidamente cantado.
O CD 2 traz demos e lados B dos singles, além de uma
versão estendida da faixa-título, que, mesmo sem a introdução do coro infantil
da época da I Guerra Mundial, dura mais de sete minutos. Ideal para quando você
deseja apenas a pauleira, sem o introito lúdico.
Com relação aos lados B, mesmo no distante e atrasado
Brasil, a maioria já havia saído nos anos 80, seja no 45 Rpm de The Boy With
The Thorn In his Side, seja na coletânea The World Won’t Listen, versão
empobrecida do então duplo Louder Than Bombs. Assim, a única “novidade” para
ouvintes tupiniquins que nunca puseram os ouvidos em edições gringas ou piratas
é a instrumental Money Changes Everything, que, se não faz falta, é curiosa
porque originou The Right Stuff, do álbum Bête Noire (1987), de Bryan Ferry. O
ex-Roxy Music ouviu o lado B de Bigmouth Strikes Again e percebeu que se
colocasse letra, teria hit nas mãos.
Chamou seu fã Johnny Marr para tocar guitarra na faixa, que, claro, fez sucesso
na versão podre de chique de Ferry. Mesmo conhecidas, é ótimo ouvir a canção de
ninar suicida de Asleep ou o reggae de Rubber Ring em versões remasterizadas,
além de em um contexto do qual realmente fazem parte.
Quanto às versões demo, o que salta aos ouvidos é a
solidez da visão que Morrissey e Marr tinham com relação a como a banda deveria
soar. Decepcionar-se-á quem espera versões bem diferentes daquelas da
obra-prima. São apenas detalhes na letra ou arranjos, polidos por Marr, que não
usava sintetizadores, mas gerava sofisticadas superposições de camadas de
guitarra ou inclusão de efeitos como a voz de Morrissey em rotação alterada
para obter aquela vozinha de fundo em Bigmouth Strikes Again, ausente na demo version. Até a aparente desconexão
entre instrumentação e vocal de The Boy... se faz presente na demo. A crueza da
versão preliminar de Frankly, Mr. Shankly revelará melhor ainda a sofisticação
das cordas de Johnny Marr. Ouvida com fones, a demo soará como se o cara
estivesse esbanjando linhas melódicas, porque é uma em cada ouvido. Brilhante.
A mudança mais radical entre demo e versão oficial de
The Queen Is Dead é na faixa Never Had No One Ever, com quase o dobro do tempo
e seção final cheia de metais dissonantes de free jazz. Como sabido, a versão do álbum dispensou isso em troca
de camadas de efeitos e até simulação de choro, muito mais em sintonia com o estado
mental do narrador, deprimido e envergonhado com tanta solidão. Além disso, na
demo, Morrissey “dialoga” com o pistão, que é até meio sexy. Mas, para isso os
anos 80 já tinham Jimmy Sommerville e o próprio Mozz já soltara a franga na
gritaria em falsete de Miserable Lie, do primeiro LP.
O CD 3 traz a apresentação ao vivo em Boston, do dia 5
de agosto de 1986. Dá pra entender que os curadores desejavam manter a mesma
qualidade de som e apresentar um show inteiro, mas quase metade das 13 canções
já fora lançada oficialmente ao vivo, no LP Rank (1988). Seria muito mais
aproveitável se versões ao vivo de Frankly, Mr. Shankly e Meat Is Murder
estivessem no lugar de Rubber Ring/What She Said e Is It Really So Strange, por
exemplo.
Os Smiths se recusaram a usar sintetizadores, mas Johnny
Marr jamais teve pudores em tratar o som de sua guitarra, sobrepondo-a em
camadas. Isso fazia com que a experiência ao vivo fosse mais crua do que a de
estúdio. Pra viciados na pureza experimental de estúdio, como este resenhista,
os Silvas resultavam menos fascinantes no palco, ainda que lá demonstrassem ser
feroz banda de rock. A competência do quarteto era tamanha que agrada7vam as 2
facções. Mesmo ao vivo, nós amantes de estúdio não podemos reclamar de tudo. Em
turnês, a banda empregava Craig Gannon como segundo guitarrista, então, Marr
até consegue semi-reproduzir a hipnose circular do arranjo de How Soon Is Now.
Pra quem ama visceralidade roqueira, confira a demolição de The Queen Is Dead.
Os Smiths alcançaram seu pico de criatividade com The
Queen is Dead e um par de singles subsequentes indicava que a usina de boas ideias
ainda geraria muita energia.
Ledo engano. As datas finais da turnê do clássico foram
canceladas por exaustão e porque as tensões já eram insuportáveis. Menos de um
ano depois de The Queen Is Dead, os Smiths se desintegraram, levando a uma mini-onda
de suicídios na Inglaterra e Japão (sério!).
Quando Strangeways, Here We Come saiu, em setembro de
87, o grupo não mais existia. Talvez tenha sido melhor assim, visto que o canto
do cisne não alcançou a qualidade do material anterior.
Seguiu-se feia e sangrenta batalha judicial por
direitos autorais. Frustrações, exaustão, drogas, alcoolismo, falta de
empresário mais competente foram algumas das razões dadas por diferentes
membros para explicar o fim de uma era.
Quaisquer que tenham sido
as razões para o fim dos Smiths, o que realmente importa é que é deles o Sgt.
Peppers do indie rock. Realizando o desejo expresso na letra de Frankly, Mr.
Shankly, Morrissey, Marr, Rourke e Joyce entraram para a história da música.
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