TOM JOBIM, A REPÚBLICA E EU.
José
Carlos Sebe Bom Meihy
Espero que ninguém precise passar por uma circunstância tão estranha como a que vivi dias atrás. Uma amiga estrangeira, amante intransigente de nosso país, ousou perguntar-me por mensagem eletrônica sobre o “que anda acontecendo com a chamada vida política brasileira”? E, em apelo decisivo, meio perdida entre bombardeios de opiniões, quase que suplicava “por favor, explique-me, pois, estando distante, não dá para entender essa coisa de divisão do pais em duas correntes, essa polarização entre esquerda e direita”. Pensei em não responder, como se a pergunta fosse apêndice descartável de nossa correspondência sempre fiada por gentilezas e sugestões acadêmicas. Talvez, devesse mesmo ter deixado passar em branco, mas de tal maneira me doeu a gravidade da questão que me coloquei em alerta, tentando mostrar algo além das análises corriqueiras, dos clichês que povoam jornais, ou mesmo da balbúrdia promovida pelas redes sociais. Resolvi, em resposta, fazer uma lista de argumentos, algo que fosse além dos fatos imediatos, das constatações que terminam na obviedade simplificadora da tal “corrupção sistêmica”, ou da “cultura política corrompida”. Nadava contra a correnteza que fatalmente me levaria ao lugar comum quando lembrei de duas frases do nosso compositor maior, Tom Jobim. Na primeira, decretava com autoridade de quem sabe musicar a cultura: “o Brasil não é para principiantes”. Achei que este seria bom começo para explicar nossa complexidade. A outra frase, dita quando cobravam dele o sobejado entusiasmo pelas coisas nacionais e a ausência de protestos. Respondendo a repórteres impertinentes, certa feita, para dizer que nunca fizera uma só canção crítica, na placidez de quem sabe das coisas, declarou, “não adianta, o globo gira para a direita”...
Iluminado, achei o meu caminho explicativo para a amiga interlocutora.
E seria virtuoso começar pela proclamação da nossa República, deflagrada por
militares que haviam jurado fidelidade ao monarca deposto. Tomando como ponto
de partida o fato da virada da página imperial ter se dado por golpe militar,
buscou-se desdobrar o novo sistema que, contudo, teve o povo sempre distante
das decisões centrais. Ainda que desde logo tivéssemos entusiastas, foram os
soldados que assumiram o regime. De maneira patriarcal, como tutelares do poder
ao longo da História, os militares resolveram sempre tratar a República como
responsabilidade sua. A cada ameaça de autonomia democrática, um novo golpe. E
assim, um atrás do outro, nunca tivemos nossa democracia continuada. De maneira
intermitente, mas com insistência, sutil ou não, promoviam-se alardes
espetaculosos, sendo que um dos mais consequentes se perpetuou formulando um
formidável fantasma: a esquerda cruel. Construção engenhosa, deitada
eternamente em berço esplêndido, o comunismo (e agora o temor que viremos uma
Venezuela) se apossou dos discursos despreparados para a compreensão do
processo histórico como um todo.
A ruptura da ordem constitucional foi ganhando jeito
nosso e, pode-se dizer, teve qualificação ditatorial clara em 1934 quando então
interrompe-se discussão democrática e Varga outorga nova Constituição. Por
lógico, o Estado Novo (1937) é prolongamento da mesma intenção. Em 1964,
novamente voltam os militares com a mesma lenga de “correção de rota”. Chamando
o golpe de revolução, com apoio de potentes forças civis, novamente os
militares lembravam a todos a que vinham. Com o correr dos anos, a prática de
tomada do poder se aperfeiçoou no Brasil e então passamos a ter aparente
fachada legal para a manutenção de posicionamentos que se assumiram “de
direita”. Houve um momento em que a perfeição golpista chegou ao limite máximo.
Em 1961 o Congresso Nacional, frente ao reposicionamento militar que queria
impedir a posse de João Goulart, depois da renúncia de Jânio, acatou o
parlamentarismo como alternativa por tempo limitado. Com isso, mudava-se o
padrão de tomada do poder. Assim, o Congresso Nacional passava a se assumir
como guardião da República. A esse procedimento pode-se dizer que se deu uma
espécie de golpe legalizado, valendo-se da ordem constitucional para alterar as
regras estabelecidas. Paradoxalmente a tais golpes, não se pode imputar
ilegitimidades. É quando, então, o judiciário atua como espaço de manobra para
ginásticas exegéticas. O resultado é o que temos hoje, golpes que não podem ser
considerados como tal porque se revestem de novidades legais.
Não são poucos os que pedem
a volta do regime militar. Também são, felizmente, muitos os que apelam para a
manutenção da ordem democrática, mas nos atalhos da prática política com as
constantes interferências de forças estranhas à democracia, a memória da ordem
e do progresso se impõe confundindo o direito ao voto. É quando o jogo de
esquerda x direita se reinstala, apagando a possibilidade de autonomia popular.
Como nunca, faz-se imperiosa a luta pelo estabelecimento definitivo da
democracia. A continuidade constitucional tem que ser respeitada e os
procedimentos eleitorais devem ser validados. Todos têm direito a se candidatar,
todos, inclusive os militares. Eleitos, o respeito lhes deve ser imputado.
Tomara que a próxima geração tenha melhores dias. Quanto a Tom Jobim, acertou
ao dizer que realmente “o Brasil não é para principiantes”, mas, se acertou que
“o globo gira para a direita”, que o rumo seja democrático, garantindo o
republicano direito de ser de esquerda.
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