VELHOS E NOVOS ESTEREÓTIPOS POLÍTICOS: voto popular e Venezuela.
José Carlos Sebe Bom Meihy
A complexidade da compreensão cultural do povo brasileiro mostra-se a cada vez mais intrincada. A medida em que se mergulha na busca de entendimentos de manifestações individuais ou coletivas, vive-se o significado clássico do “só sei que nada sei”. É assim mesmo, e bom que seja dessa forma. Embrulhado é quando fechamos conversas explicando detalhes da vida, como se fosse possível dar conta de lógicas subjetivas, arraigadas no subterrâneo profundo da História. Não se afirma, contudo, que os esforços sejam inúteis. A ciência – em particular as ciências sociais - se organizam nesse sentido, e louva-se o ordenamento metodológico que preza o conhecimento racional, formal, cumulativo, como dimensão instruída da opinião pública. Aliás, é exatamente essa premissa que nos convida ao direito de acesso à crítica. Fala-se, portanto, da sagrada prerrogativa de todos terem escolas disponíveis, livres, abertas e acessíveis.
O enunciado desta crônica remete a um dos pontos mais instigantes do atual momento político nacional: o direito universal ao voto. No Brasil, tal condição apenas foi definida na Constituição de 1988, que aliás coroou a Abertura Política. Pode-se dizer que, de forma cabal, apenas com a atual Constituição se colocou termo no golpe civil/militar iniciado em 1964, definido pelos atos autoritários do que eufemisticamente se chamava “revolução”. Sem dúvida, entre alguns avanços, o voto do analfabeto foi a grande virtude conquistada. Antes, iletrados teriam que pagar impostos e demais encargos cidadãos, mas, votar lhes era impedido. Essa arcaica percepção decorre de uma esclerose diretiva que supõe que apenas quem sabe ler, escrever e contar tem domínio das faculdades decisivas comunitárias e nacionais. Os outros não. Decorrência natural dessa excrescência conceitual, quem tem curso universitário, por perverso e assassino que seja, até merece ter prisão especial. O absurdo dessa norma – que desmente a igualdade de direitos – tem por princípio privilegiar a cultura escrita, hierarquizando saberes, excluindo peremptoriamente os demais.
A proximidade do novo processo eleitoral, importante como todos os outros anteriores, traz à flor d’água o velho debate sobe quem sabe/pode votar, ou não. E assim emerge o mais agudo de nossos defeitos políticos, o direito de usar o conceito de “povo” como argumento seletivo para reivindicar a capacidade eleitoral de correntes contrárias a “nossa” opinião. Recuperando os mais arraigados princípios da soberania pela equivalência do grau de escolaridade e capital acumulado (lembrando que por muito tempo só poderia votar e ser eleito quem tivesse posse de terra), ousamos dizer com a boca cheia que “povo não sabe votar”. Como se os “cultos” fossem melhores, honestos, preparados para o comando de todos, excluía-se mecanicamente o “povo” da potência decisória nacional. Dois pontos merecem destaque nesse artifício aberrante. O primeiro diz respeito ao não reconhecimento do direito a escola por meio de cotas. Exatamente para que todos tenham, democraticamente, direito à educação formal, postula-se o livre trânsito letrado. Outro ponto permite constar que a classe média, justamente pessoas que se valeram dos benefícios gerais do estado, se aparta do composto coletivo quando percebe direcionamento diverso do seu, em termos de preferências eleitorais. Dá-se então o quase cômico contraditório: quando as manifestações públicas e coletivas são coerentes com os desideratos da classe média, então “somos povo”, e juntos vestimos a camisa da seleção de futebol, empunhamos bandeiras e cantamos as toadas desdobradas desde o velho “este é um país que vai pra frente”. O reverso se dá quando se nota que o “povo” tem posições que não condizem com o coro pretendido, e, nesse caso vale o conveniente “povo não sabe votar”. Nessas circunstâncias, aliás, evoca-se o chavão eternamente útil que apregoa “que a educação salva”, entendendo por educação o acesso à escola. Lembremos que o direito à escola, constitucionalmente estabelecido, é exatamente negado quando se fala de cotas para desfavorecidos social e etnicamente.
Em meio ao carnaval de confusões, uma novidade ganha corpo: “o Brasil vai virar Venezuela”. Na realidade, esse pressuposto alarmista tem certa idade, pois atualiza o que foi na geração passada Cuba e antes a União Soviética. Por trás da ignorância arrepiante sobre História e condições geopolíticas, esconde-se um maldoso fator que aterroriza a nossa incipiente classe média: o medo. Revivescendo o infantil pânico causado pelo comunismo ou pelo socialismo em qualquer versão, pessoas que temem a democracia plena, e em cega defesa própria, exercitam o que não conhecem, favorecendo assim fantasias improváveis, soluções políticas adversas ao gosto nacional. O Brasil não tem e nunca teve vocação para regimes comunistas, socialistas ou correlatos. Jamais seremos a “nova Venezuela”, como nunca fomos Cuba, China, Armênia. Nosso perfil histórico é outro, e se deixarem abertas as comportas das eleições poderemos sim encontrar o caminho sempre interrompido por segmentos que temem o povo e lhes negam condições que, afinal, consagram o dito “a voz do povo é a voz de Deus”. Só há democracia com o pacto consagrado em eleições livres. E que não seja agora que fundamentalistas que confundem os democratas intransigentes com a existência de uma esquerda radical entre nós. Somos povo e pronto. Queremos democracia ampla, direito de voto respeitados de todos, para todos e por todos.
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