quinta-feira, 9 de novembro de 2017

TELONA QUENTE 210


Roberto Rillo Bíscaro

Como se não bastasse o horror de ser estuprada, mulheres amiúde são culpabilizadas pela violência. Se usasse saia mais longa, se não estivesse em tal lugar a tal hora, enfim, um monte de absurdos que de propósito esquecem que estupros acontecem também a caminho da igreja com roupona tapando quase tudo. A cultura do estupro é tão arraigada que as próprias vítimas introjetam a culpa.
Imagine (seria tão bom não ter que...) ser violentada quando se pertence a instituição que prega a castidade, como a Igreja. Este é o drama do solene e correto Agnus Dei (2016), da diretora francesa Anne Fontaine, disponível na Netflix.
Freiras dum convento polonês pouco tem a celebrar com o término da Guerra, em 1945. “Visitas” de solados alemães e depois dos “libertadores” soviéticos deixaram 7 delas grávidas e outras tantas com doenças venéreas. Mulheres despreparadas até pra mostrar partes do corpo que não sejam o rosto e mãos; treinadas pra abominar contato carnal e automaticamente prontas pra se culpar por ele e crentes num ser supremo que as devia proteger encontram-se em situação de potencial e funesto opróbrio social. O roteiro não toca nesse ponto, mas mulheres que mantiveram relações com os invasores foram hostilizadas barbaramente no pós-guerra, não importando muito a consensualidade dos atos. Os rebentos resultantes também sofriam as consequências. Na supercatólica Polônia, freiras grávidas não teriam a menor chance.
Baseado em fatos, Agnus Dei mostra como uma médica francesa  comunista e ateia da Cruz Vermelha consegue ganhar a confiança e ajudar essas mulheres que não se deixavam nem tocar no começo.
Ponto forte do roteiro é não cair no sentimentalismo barato; Agnus Dei é austero, lento e quieto e não coloca a Dra. Mathilde como heroína toda poderosa perante as indefesas e bobas freiras. Ela também é mulher; está no mesmo barco, não importa se crê ou não, se curte comuna ou não.
Sem nenhuma inovação formal ou firula de inverter tempo da narrativa, a estreante Fontaine fez um filme redondinho – ainda que o roteiro de vez em quando podia dar mais detalhes ou discussões – bem ao estilo “europeu” de cines de arte ou festivais de antanho.
Sintonizada com o tema pesado e o rigoroso inverno polaco, a paleta de cores de boa parte de Agnus Dei é mortiça, cheia de tons frios, gélidos, sepulcrais. Quando chega a primavera e a solução pro problema, as cores esquentam um bocadinho, junto com a música.
Ainda que longe de ser grande película, Agnus Dei trata dum tema mais necessário do que nunca, num ambiente onde empatia pela dor do outro parece estar virando ato subversivo.

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