Roberto Rillo Bíscaro
Como se não bastasse o horror de ser estuprada,
mulheres amiúde são culpabilizadas pela violência. Se usasse saia mais longa,
se não estivesse em tal lugar a tal hora, enfim, um monte de absurdos que de
propósito esquecem que estupros acontecem também a caminho da igreja com
roupona tapando quase tudo. A cultura do estupro é tão arraigada que as
próprias vítimas introjetam a culpa.
Imagine (seria tão bom não ter que...) ser violentada
quando se pertence a instituição que prega a castidade, como a Igreja. Este é o
drama do solene e correto Agnus Dei (2016), da diretora francesa Anne Fontaine,
disponível na Netflix.
Freiras dum convento polonês pouco tem a celebrar com o
término da Guerra, em 1945. “Visitas” de solados alemães e depois dos
“libertadores” soviéticos deixaram 7 delas grávidas e outras tantas com doenças
venéreas. Mulheres despreparadas até pra mostrar partes do corpo que não sejam
o rosto e mãos; treinadas pra abominar contato carnal e automaticamente prontas
pra se culpar por ele e crentes num ser supremo que as devia proteger
encontram-se em situação de potencial e funesto opróbrio social. O roteiro não
toca nesse ponto, mas mulheres que mantiveram relações com os invasores foram
hostilizadas barbaramente no pós-guerra, não importando muito a consensualidade
dos atos. Os rebentos resultantes também sofriam as consequências. Na supercatólica
Polônia, freiras grávidas não teriam a menor chance.
Baseado em fatos, Agnus Dei mostra como uma médica
francesa comunista e ateia da Cruz
Vermelha consegue ganhar a confiança e ajudar essas mulheres que não se
deixavam nem tocar no começo.
Ponto forte do roteiro é não cair no sentimentalismo
barato; Agnus Dei é austero, lento e quieto e não coloca a Dra. Mathilde como
heroína toda poderosa perante as indefesas e bobas freiras. Ela também é
mulher; está no mesmo barco, não importa se crê ou não, se curte comuna ou não.
Sem nenhuma inovação formal ou firula de inverter tempo
da narrativa, a estreante Fontaine fez um filme redondinho – ainda que o
roteiro de vez em quando podia dar mais detalhes ou discussões – bem ao estilo
“europeu” de cines de arte ou festivais de antanho.
Sintonizada com o tema pesado e o rigoroso inverno
polaco, a paleta de cores de boa parte de Agnus Dei é mortiça, cheia de tons
frios, gélidos, sepulcrais. Quando chega a primavera e a solução pro problema,
as cores esquentam um bocadinho, junto com a música.
Ainda que longe de ser
grande película, Agnus Dei trata dum tema mais necessário do que nunca, num
ambiente onde empatia pela dor do outro parece estar virando ato subversivo.
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