É senso-comum o fato de depois de morta a pessoa
ser lembrada apenas por supostas qualidades, reais ou inventadas, tendo seus
defeitos suavizados, quando não obliterados. Quando se trata de jovem, com
futuro todo pela frente, a coisa é ainda mais ch/tocante, porque de certo modo,
adolescentes ainda são meio conectados ao estatuto angelical infantil. Fato é
que há séculos a juventude é glorificada pelo vigor e pela garantia da espécie.
O roteiro da controversa 13 Reasons Why, da Netflix, conta,
dentre outras coisas, com essa romantização do indivíduo após a morte para que
o suicídio de Hannah Baker tenha sido percebido por não poucos como saga de 13
capítulos de martírio pra protagonista, sem se darem conta dos defeitos da
garota e da reprodução desse mesmo sofrimento em outras personagens, que não
passaram de ferramentas pra que sentíssemos dó da narradora-defunta.
Essa manipulação faz de 13 Reasons Why perigosa, mas
muito interessante. Perigosa, porque temos que reiterar a todo momento que sim,
é uma pena que Hannah tenha se matado, que não estamos desconsiderando sua dor,
que ninguém merece morrer blá, blá, blá. Interessante, porque Baker não é
santificada; é cheia de defeitos e não é nada especial, mas a adoção de seu
ponto de vista como guia do telespectador tem o poder de fazer com que até a
tragédia dos outros seja sugada feito buraco negro pela protagonista e
transformada em dor pra si – estando nem aí pra quem a sofreu – a ponto de
muitos sequer considerarem a parcela de responsabilidade de Hannah em sua queda
e o grau elevado de narcisismo da moçoila, que filtrava tudo e todos a partir
de seu centro. Hannah Baker não é monstra; não merecia ser estuprada; nem todo
mundo aguenta as pressões mesmo, mas, ela não submeteu Clay ao mesmo que acusa
os demais de terem feito consigo?
O tímido Clay Jensen – que ótimo aquele ator! – é o
herói da trama, no sentido de ser ele a personagem que descreve o tal círculo
do herói, que leva de um ponto de desconhecimento a um de esclarecimento. Pra
que isso ocorra, tem que passar pelo mesmo bullying
pelo qual Hannah passou e quem é a principal executora desse assédio
psicológico? Hannah Baker, que faz o moço ouvir quase todas as fitas (isso das
fitas é podre, vamos combinar?) antes de absolvê-lo, ao mesmo tempo que afirma
que negligência foi seu único delito? Epa, mas Clay tentou falar com ela na
festa onde quase transam e Hannah o rechaçou. Como fica a tal cultura que
também preza tanto pela individualidade? Se ele forçasse a barra seria
intrometido, se atende o pedido dela é negligente, qual é?
O “problema” sempre é a forma. O drama burguês não dá
conta de assuntos sociais, então, suicídio tem que ser filtrado pelo viés
individual. Daí tem que ter herói, alguém pra se identificar e tal, e tudo vira
um rol de motivos pessoais. A morte de Hannah é “culpa” dos outros. Sou
professor e identifiquei-me com o psicólogo da escola. Quase na véspera do
suicídio, ela o procura e, nos termos das fitas, ele foi a última porta que se
fechou em sua cara. Ela foi falar sobre o estupro na jacuzzi de Bryce, mas é
evasiva nível hard! O profissional
sugere que ela deva tocar a vida pra frente. O que poderia fazer se ela não lhe
deu informações pra agir? Ela talvez tivesse medo, mas se uma
aluna viesse apenas aludindo sobre abuso, o que se esperaria que eu fizesse?
Estamos numa época de caça às bruxas, onde bastou delatar com achismo e já se
destroem reputações e reitores se suicidam como consequência. Mas o conselheiro
educacional fez correto: como ele acusaria alguém se Hannah foi irritantemente
reticente? Recusar-me-ia a levar a culpa pela morte dalgum estudante nessas
condições! O roteiro sugere que temos que ter poderes psíquicos pra ler mentes?
“Sem consultar o Google, diga o nome do garoto que
morreu no acidente de carro devido a derrubada da placa”, perguntei como teste,
no Facebook, e das 3 respostas apenas 1 acertou: Jeff. Se fosse pesquisa
científica, a amostragem seria pífia, mas serve como começo de discussão – esta
postagem não é resenha, é isca pra pensar. Sua morte não teve um décimo do pesar como a
de Hannah, especialmente por parte dela. Isso porque Jeff serviu apenas como
instrumento pra sentirmos mais pena da suicida, ou seja, sua morte não teve
repercussão intrínseca, serviu apenas pra mostrar como o mundo era cruel com
Hannah. Mas, espera, Jeff não mereceria mais que isso? Sim, mas se o roteiro
“perdesse tempo” com esse sacrifício expiatório, haveria problema com a
identificação com a personagem. Então, a morte dela deve ser chorada, a de Jeff
apenas catalogada como mais uma porrada em Hannah.
Na mesma noite do desastre de carro, ocorre o estupro
de Jessica, uma vez melhor amiga de Baker. Tirando que achei draminha exagerado
essa história de Alex e Jessica terem “abandonado” Hannah (me deixa, quantos
amigos não se distanciaram de você, caro leitor? Ou você se afastou. Isso chama-se
vida, meu bem), a violência sexual também foi basicamente interpretada por
Hannah como algo mais danoso a ela do que à ex-amiga! E agora vem outro ponto
muito perigoso, porque poderão chamar de protetor do agressor quem levanta essa
lebre. Então, já adianto: Bryce é indefensável, estuprador em série maldito! Mas,
meu, Hannah sabia disso, porque o viu em ação e mesmo assim vai pra sua casa e
fica na jacuzzi depois de todos terem ido embora. Por Deus! Claro que Bryce é
safado sem-vergonha, mas a situação do abuso de Hannah não é a mesma de uma
menina andando na rua e atacada a esmo. Claro que traumatizou, óbvio que
contribuiu muito pra seu suicídio, mas, a cultura norte-americana vive
insistindo na responsabilidade, nas consequências dos atos, e nesse caso?
Hannah Baker não procurou fazer amigos, dava patadas
mil em Clay, enfim, sabe o que acho que faltou em 13 Reasons Why? Uma fita
sobre Hannah Baker, que botou a culpa em todo mundo, menos nela mesma e olha
que essa garota pensava só nela parece. Cadê uma notinha que seja pros pais?
Ela atacou todo mundo, mas deixou os pais no limbo.
O roteiro quer mostrar que
minúsculas ações podem ter repercussão maciça na vida de outrem, mas do jeito
que a coisa está posta, parece que inviabiliza qualquer relação social! A gente
não pode falar nada que já seria pazinha de terra na cova dum suicida. Eu, hein, nenêm!
Interessantes colocações, não que oncorde exatamente com tudo.
ResponderExcluir