terça-feira, 5 de dezembro de 2017

TELINHA QUENTE 288



Roberto Rillo Bíscaro

É senso-comum o fato de depois de morta a pessoa ser lembrada apenas por supostas qualidades, reais ou inventadas, tendo seus defeitos suavizados, quando não obliterados. Quando se trata de jovem, com futuro todo pela frente, a coisa é ainda mais ch/tocante, porque de certo modo, adolescentes ainda são meio conectados ao estatuto angelical infantil. Fato é que há séculos a juventude é glorificada pelo vigor e pela garantia da espécie.
O roteiro da controversa 13 Reasons Why, da Netflix, conta, dentre outras coisas, com essa romantização do indivíduo após a morte para que o suicídio de Hannah Baker tenha sido percebido por não poucos como saga de 13 capítulos de martírio pra protagonista, sem se darem conta dos defeitos da garota e da reprodução desse mesmo sofrimento em outras personagens, que não passaram de ferramentas pra que sentíssemos dó da narradora-defunta.
Essa manipulação faz de 13 Reasons Why perigosa, mas muito interessante. Perigosa, porque temos que reiterar a todo momento que sim, é uma pena que Hannah tenha se matado, que não estamos desconsiderando sua dor, que ninguém merece morrer blá, blá, blá. Interessante, porque Baker não é santificada; é cheia de defeitos e não é nada especial, mas a adoção de seu ponto de vista como guia do telespectador tem o poder de fazer com que até a tragédia dos outros seja sugada feito buraco negro pela protagonista e transformada em dor pra si – estando nem aí pra quem a sofreu – a ponto de muitos sequer considerarem a parcela de responsabilidade de Hannah em sua queda e o grau elevado de narcisismo da moçoila, que filtrava tudo e todos a partir de seu centro. Hannah Baker não é monstra; não merecia ser estuprada; nem todo mundo aguenta as pressões mesmo, mas, ela não submeteu Clay ao mesmo que acusa os demais de terem feito consigo?
O tímido Clay Jensen – que ótimo aquele ator! – é o herói da trama, no sentido de ser ele a personagem que descreve o tal círculo do herói, que leva de um ponto de desconhecimento a um de esclarecimento. Pra que isso ocorra, tem que passar pelo mesmo bullying pelo qual Hannah passou e quem é a principal executora desse assédio psicológico? Hannah Baker, que faz o moço ouvir quase todas as fitas (isso das fitas é podre, vamos combinar?) antes de absolvê-lo, ao mesmo tempo que afirma que negligência foi seu único delito? Epa, mas Clay tentou falar com ela na festa onde quase transam e Hannah o rechaçou. Como fica a tal cultura que também preza tanto pela individualidade? Se ele forçasse a barra seria intrometido, se atende o pedido dela é negligente, qual é?
O “problema” sempre é a forma. O drama burguês não dá conta de assuntos sociais, então, suicídio tem que ser filtrado pelo viés individual. Daí tem que ter herói, alguém pra se identificar e tal, e tudo vira um rol de motivos pessoais. A morte de Hannah é “culpa” dos outros. Sou professor e identifiquei-me com o psicólogo da escola. Quase na véspera do suicídio, ela o procura e, nos termos das fitas, ele foi a última porta que se fechou em sua cara. Ela foi falar sobre o estupro na jacuzzi de Bryce, mas é evasiva nível hard! O profissional sugere que ela deva tocar a vida pra frente. O que poderia fazer se ela não lhe deu informações pra agir? Ela talvez tivesse medo, mas se uma aluna viesse apenas aludindo sobre abuso, o que se esperaria que eu fizesse? Estamos numa época de caça às bruxas, onde bastou delatar com achismo e já se destroem reputações e reitores se suicidam como consequência. Mas o conselheiro educacional fez correto: como ele acusaria alguém se Hannah foi irritantemente reticente? Recusar-me-ia a levar a culpa pela morte dalgum estudante nessas condições! O roteiro sugere que temos que ter poderes psíquicos pra ler mentes?
“Sem consultar o Google, diga o nome do garoto que morreu no acidente de carro devido a derrubada da placa”, perguntei como teste, no Facebook, e das 3 respostas apenas 1 acertou: Jeff. Se fosse pesquisa científica, a amostragem seria pífia, mas serve como começo de discussão – esta postagem não é resenha, é isca pra pensar.  Sua morte não teve um décimo do pesar como a de Hannah, especialmente por parte dela. Isso porque Jeff serviu apenas como instrumento pra sentirmos mais pena da suicida, ou seja, sua morte não teve repercussão intrínseca, serviu apenas pra mostrar como o mundo era cruel com Hannah. Mas, espera, Jeff não mereceria mais que isso? Sim, mas se o roteiro “perdesse tempo” com esse sacrifício expiatório, haveria problema com a identificação com a personagem. Então, a morte dela deve ser chorada, a de Jeff apenas catalogada como mais uma porrada em Hannah.
Na mesma noite do desastre de carro, ocorre o estupro de Jessica, uma vez melhor amiga de Baker. Tirando que achei draminha exagerado essa história de Alex e Jessica terem “abandonado” Hannah (me deixa, quantos amigos não se distanciaram de você, caro leitor? Ou você se afastou. Isso chama-se vida, meu bem), a violência sexual também foi basicamente interpretada por Hannah como algo mais danoso a ela do que à ex-amiga! E agora vem outro ponto muito perigoso, porque poderão chamar de protetor do agressor quem levanta essa lebre. Então, já adianto: Bryce é indefensável, estuprador em série maldito! Mas, meu, Hannah sabia disso, porque o viu em ação e mesmo assim vai pra sua casa e fica na jacuzzi depois de todos terem ido embora. Por Deus! Claro que Bryce é safado sem-vergonha, mas a situação do abuso de Hannah não é a mesma de uma menina andando na rua e atacada a esmo. Claro que traumatizou, óbvio que contribuiu muito pra seu suicídio, mas, a cultura norte-americana vive insistindo na responsabilidade, nas consequências dos atos, e nesse caso?
Hannah Baker não procurou fazer amigos, dava patadas mil em Clay, enfim, sabe o que acho que faltou em 13 Reasons Why? Uma fita sobre Hannah Baker, que botou a culpa em todo mundo, menos nela mesma e olha que essa garota pensava só nela parece. Cadê uma notinha que seja pros pais? Ela atacou todo mundo, mas deixou os pais no limbo.
O roteiro quer mostrar que minúsculas ações podem ter repercussão maciça na vida de outrem, mas do jeito que a coisa está posta, parece que inviabiliza qualquer relação social! A gente não pode falar nada que já seria pazinha de terra na cova dum suicida. Eu, hein, nenêm!

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