Roberto Rillo Bíscaro
O primeiro conto estrelado pelo sempre popular Sherlock Holmes foi A Scandal in Bohemia, em 1891, na The Strand Magazine. O rei de
fictício país germânico procura o detetive pra recuperar foto comprometedora: o
monarca estava prestes a se casar, mas sua ex possuía registro a seu lado. Mais
dum século adiante, tal preocupação soaria ridícula; até tetinha da Realeza
britânica saiu em jornal e Charles manifestou desejo de ser Tampax.
Há que modernizar enredos e tramas. TV mira
especialmente pro público até 40 e poucos anos; esta é a faixa que mais consome
a montoeira de bobagens anunciada. Difícil querer que uma garota contemporânea
não caia na gargalhada e mande à merda uma donzelinha do século XIX, cujo “problema”
é ser chamada ou não pelo nome cristão pelo pretendente (leia Rachel Ray, do Trollope) E quem poderia culpa-la por não se importar com esse “dilema”? Não
tem mais nada a ver com a experiência do século XXI, quando (parte (d)a
mulherada ameaça com porrada e bomba.
Isso veio à cabeça, quando soube das muitas críticas à
Anne With An E (2017), da Netflix. Muitos fãs da ruivinha esbravejaram que os 7
capítulos da coprodução com a TV canadense CBC acrescentaram faceta psicológica
ausente nos livros. A despeito do rebuliço, a produção foi renovada,
significando que deu audiência.
Senhor 50tão, entendo a reclamação. Houve versão
anterior na TV canadense, então é essa que vive no coração da geração mais
antiga. Senti o mesmo quando vi a malfadada reedição de DALLAS e experimento de
novo o sentimento de dessacralização com a nova leitura de Dynasty. Embora não
esteja ruim e até seja bem fiel à original, Blake sempre será John Forsythe,
esbravejando “what the devil, Alexis!”
Não vi a Anne antiga, nem tenciono, mas só a
sentimentalismo água com açúcar de Anne Shirley provavelmente não segurasse
essa moçada em frente à telinhona.
Anne With An E é mais uma adaptação do romance Anne of
Green Gables (1908) da canadense L. M. Montgomery. Narra o crescimento e as
aventuras de Anne Shirley, órfã enviada por engano à fazenda dos irmãos Mathew
e Marilla Cuthbert, na Ilha do Príncipe Eduardo. Eles queriam um menino pra
ajudar no serviço, mas recebem a loquaz sardenta, que, aos poucos conquista a
todos, vencendo o preconceito inicial por sua orfandade. O sentimentalismo de
119 anos atrás não se sustentaria perante o público jovem. Na verdade, nem nós
50tões mais cínicos aguentaríamos tanta sacarina, provavelmente.
Pra tornar Anne mais profunda, a versão Netflix/CBC
mostra cenas de flashback, onde vemos
o pão amassado pelo diabo que a menina comeu sob forma de pesado bullying físico e psicológico. A Anne da
era em que setembro é dedicado à prevenção do suicídio, é uma garota
profundamente traumatizada e insegura. Isso explica muito seus delírios,
simpáticos, sim, mas surtos; fugas pra idealizados mundos onde não sofra. Único
estranhamento é que as cenas do passado são com a mesma atriz – a perfeita Amybeth
McNulty – dando a sensação de que Anne vive preservada em formol.
Anne Shirley é a clássica outsider, a alma especial em meio aos comuns. Sonhadora de
devanear, a garota usa palavras difíceis, é obcecada por drama e romance e cita
Jane Eyre à profusão. Realmente, a personagem de Charlote Brontë é o molde do
qual nasceu Anne. Considerando-se o tanto de trabalho, a aparente
não-permanência por longo período com família alguma e a quase inexistência de
educação formal, a erudição de Anne é bastante improvável. Não que sem
escolaridade não se possa desenvolver rico vocabulário, mas imaginamos onde ela
arrumava tempo entre tantas surras e faxinas, pra obter os volumes literários
que lhe permitiam decorar passagens que a transportassem pra dimensões onde não
sofresse tanto.
Anne With An E só funciona pra quem suspende o
descrédito e o cinismo pós-moderno. Pra mim foi bem fácil, porque adoro
produções “de época” (ugh!) e porque Anne é tão verborrágica, louca e
brilhante, que se torna irresistível. A gente não quer que ninguém sofra, mas
pruma alma tão vivaz e gentil como a da sardenta, não dá pra querer nada mais
que um destino esfuziantemente maravilhoso (ela gostaria dessas palavras). Às
vezes a tagarelice irrita, mas até nisso o show acerta: quem conviveu com
criança que de vez em quando temos que mandar calar a boca, entenderá. Isso
quando não me pegava com os olhos marejados, mas de repente gargalhava com
algum delicioso disparate de devaneio metralhado por Anne.
A “Princesa Cordélia”
ganhou segunda temporada de 10 capítulos. Não duvido que a atualização da
personagem tenha contribuído pra que nos conquistasse os corações aos milhares.
Saber da pavorosa infância de Anne só nos fez querê-la ainda melhor.
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