terça-feira, 26 de dezembro de 2017

TELINHA QUENTE 291


Roberto Rillo Bíscaro

O primeiro conto estrelado pelo sempre popular Sherlock Holmes foi A Scandal in Bohemia, em 1891, na The Strand Magazine. O rei de fictício país germânico procura o detetive pra recuperar foto comprometedora: o monarca estava prestes a se casar, mas sua ex possuía registro a seu lado. Mais dum século adiante, tal preocupação soaria ridícula; até tetinha da Realeza britânica saiu em jornal e Charles manifestou desejo de ser Tampax.
Há que modernizar enredos e tramas. TV mira especialmente pro público até 40 e poucos anos; esta é a faixa que mais consome a montoeira de bobagens anunciada. Difícil querer que uma garota contemporânea não caia na gargalhada e mande à merda uma donzelinha do século XIX, cujo “problema” é ser chamada ou não pelo nome cristão pelo pretendente (leia Rachel Ray, do Trollope) E quem poderia culpa-la por não se importar com esse “dilema”? Não tem mais nada a ver com a experiência do século XXI, quando (parte (d)a mulherada ameaça com porrada e bomba.
Isso veio à cabeça, quando soube das muitas críticas à Anne With An E (2017), da Netflix. Muitos fãs da ruivinha esbravejaram que os 7 capítulos da coprodução com a TV canadense CBC acrescentaram faceta psicológica ausente nos livros. A despeito do rebuliço, a produção foi renovada, significando que deu audiência.
Senhor 50tão, entendo a reclamação. Houve versão anterior na TV canadense, então é essa que vive no coração da geração mais antiga. Senti o mesmo quando vi a malfadada reedição de DALLAS e experimento de novo o sentimento de dessacralização com a nova leitura de Dynasty. Embora não esteja ruim e até seja bem fiel à original, Blake sempre será John Forsythe, esbravejando “what the devil, Alexis!”
Não vi a Anne antiga, nem tenciono, mas só a sentimentalismo água com açúcar de Anne Shirley provavelmente não segurasse essa moçada em frente à telinhona.
Anne With An E é mais uma adaptação do romance Anne of Green Gables (1908) da canadense L. M. Montgomery. Narra o crescimento e as aventuras de Anne Shirley, órfã enviada por engano à fazenda dos irmãos Mathew e Marilla Cuthbert, na Ilha do Príncipe Eduardo. Eles queriam um menino pra ajudar no serviço, mas recebem a loquaz sardenta, que, aos poucos conquista a todos, vencendo o preconceito inicial por sua orfandade. O sentimentalismo de 119 anos atrás não se sustentaria perante o público jovem. Na verdade, nem nós 50tões mais cínicos aguentaríamos tanta sacarina, provavelmente.
Pra tornar Anne mais profunda, a versão Netflix/CBC mostra cenas de flashback, onde vemos o pão amassado pelo diabo que a menina comeu sob forma de pesado bullying físico e psicológico. A Anne da era em que setembro é dedicado à prevenção do suicídio, é uma garota profundamente traumatizada e insegura. Isso explica muito seus delírios, simpáticos, sim, mas surtos; fugas pra idealizados mundos onde não sofra. Único estranhamento é que as cenas do passado são com a mesma atriz – a perfeita Amybeth McNulty – dando a sensação de que Anne vive preservada em formol.
Anne Shirley é a clássica outsider, a alma especial em meio aos comuns. Sonhadora de devanear, a garota usa palavras difíceis, é obcecada por drama e romance e cita Jane Eyre à profusão. Realmente, a personagem de Charlote Brontë é o molde do qual nasceu Anne. Considerando-se o tanto de trabalho, a aparente não-permanência por longo período com família alguma e a quase inexistência de educação formal, a erudição de Anne é bastante improvável. Não que sem escolaridade não se possa desenvolver rico vocabulário, mas imaginamos onde ela arrumava tempo entre tantas surras e faxinas, pra obter os volumes literários que lhe permitiam decorar passagens que a transportassem pra dimensões onde não sofresse tanto.
Anne With An E só funciona pra quem suspende o descrédito e o cinismo pós-moderno. Pra mim foi bem fácil, porque adoro produções “de época” (ugh!) e porque Anne é tão verborrágica, louca e brilhante, que se torna irresistível. A gente não quer que ninguém sofra, mas pruma alma tão vivaz e gentil como a da sardenta, não dá pra querer nada mais que um destino esfuziantemente maravilhoso (ela gostaria dessas palavras). Às vezes a tagarelice irrita, mas até nisso o show acerta: quem conviveu com criança que de vez em quando temos que mandar calar a boca, entenderá. Isso quando não me pegava com os olhos marejados, mas de repente gargalhava com algum delicioso disparate de devaneio metralhado por Anne.
A “Princesa Cordélia” ganhou segunda temporada de 10 capítulos. Não duvido que a atualização da personagem tenha contribuído pra que nos conquistasse os corações aos milhares. Saber da pavorosa infância de Anne só nos fez querê-la ainda melhor. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário