EPICURO E A FELICIDADE MODERNA.
José
Carlos Sebe Bom Meihy
Não sou do tipo que faz transferências ligeiras de
fatos históricos projetado no presente. Pelo menos não deveria ser. Como
profissional da História, sei que o passado não se repete e que, mesmo
respeitando Marx, nem mesmo como farsa acredito na reedição do pretérito. Essas
noções me vieram à cabeça ao retomar alguns pontos do epicurismo grego.
Lembrando que a morte de Epícuro sempre foi um dos episódios que mais
empolgantes de minha memória de estudante de filosofia, restou-me refazer
pressupostos que justificam a tentação “presentificadora”.
Nascido numa colônia ateniense (Samos 341 – 271 a.C.), jovem
ainda, Epicuro prestou serviços militares em Atenas onde se aprofundou na
contemplação sistemática da vida. Voltou ao solo natal, mas retornou a Atenas
onde foi professor por 35 anos. Independentemente de traços biográficos, vale
lembrar o radicalismo epicurista. Passados sete anos da morte do mestre Platão,
em plena era de desconstrução do apogeu grego, Epicuro pregava o prazer
imediato, em detrimento dos projetos imperiais, a longo prazo. Em síntese, para
ele, o melhor a ser feito por qualquer um seria acumular boas lembranças,
guardar as sensações extraordinárias para, na velhice ou nos momentos
aflitivos, ter o que recordar. Morrer bem era o melhor da meta epicurista.
Dizem que no caso pessoal, depois de graves dores motivadas por pedras nos
rins, ele se despediu da vida rodeado de amigos e, quando pressentiu a chegada
do fim, desnudou-se, entrou em banheira com água morna e sorveu boa taça do
vinho mais reputado. Tudo cercado de admiradores. Assim, entrando em êxtase
teria transcendido. Verdade ou não, essa narrativa sempre me encantou. Tanto
pelo exercício da guarda de frações de ocorrências boas, como pela consciência,
e até controle e escolha da própria morte. Sinceramente, fico fascinado com as
lições epicuristas.
O que mais me atrai na possibilidade de pensar essas
lições transpostas para o presente é que vivemos também uma época de confusão e
desorganização progressiva de valores tidos como fundamentais para o convívio
social. Segundo Epicuro, é exatamente nesse contexto que cabe a busca de
compensações pessoais, dos tais pequenos brindes. “Ser feliz e buscar o prazer”
essa era sua meta e isso contagiava seus pares decepcionados com o mundo em que
viviam. Convém dizer que o epicurismo vingou por muito tempo, até que 200 anos
mais tarde, Cícero, com veemência, desmereceu tais preceitos acusando-os de
hedonistas. Interessante assinalar que a noção de paraíso alcançável na Terra,
fora uma tentativa testada por Epicuro que criou o chamado “Jardim”, espaço
apartado de Atenas, onde os adeptos teriam ampla liberdade de ação. As regras
do espaço utópico e imediato eram curiosas, pois, por exemplo, mantinha-se a
propriedade privada e os estatutos pessoais (como a escravidão por exemplo),
mas os indivíduos tinham o respeito como base de convívio e a ajuda mútua como
prática rotineira. Alguns discípulos de Epicuro, como Timócrates, o estóico
Epicteto e principalmente Diógenes Laércio trataram de distorcer o ordenamento
epicurista e isso contribuiu para seu descrédito como grande pensador. Epicuro
escreveu muito, mas apenas em 1928 foram encontrados fragmentos de sua extensa
produção. O descalabro do mundo contemporâneo, agora, se preocupa em reestudar
esse pensador carismático, provocativo que, afinal, coloca em questão alguns
dos grandes dilemas da contemporaneidade: somos felizes sozinhos, com nossas
memórias boas, de gozo e prazer, ou apenas seremos felizes se somarmos
coletivamente nossas alegrias e esquecermos os pontos ruins?
O aclamado prazer pessoal,
individual proposto por Epicuro, em análise mais profunda é complexo, posto que
para ter validade, precisava ser contado em público. Os ouvintes, ou a plateia,
seriam parte inerente a uma espécie de vanguarda da “sociedade do espetáculo”.
Nessa linha, Epicuro difundia a imperiosidade do afeto social. Para quem
trabalha com questões da análise da memória social, os preceitos epicuristas
são fundamentais, pois implicam seleção (de fatos bons, gostosos, entusiastas)
com o esquecimento das atrocidades da vida. É neste sentido que se encontra
razão para retomar o estudo de Epicuro. Sem dúvida, de maneira mecânica, numa
sociedade capitalista e que tem como base o consumo e a cumulação de bens,
temos que perguntar: o que é felicidade e prazer num contexto tão rápido e
exigente de reposições? E a que público temos que nos remeter? A metáfora do
“Jardim” permanece no nosso imaginário, mas sem noções epicuristas, ele é
apenas um lugar físico. Que Epicuro nos salve, agora e na hora de nossa morte.
Amém!
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