QUANDO
AS UTOPIAS ENVELHECEM.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Que
a vida é uma caixa de surpresas todos sabem e muito bem. O que causa
perplexidade, às vezes, é a intensidade e o teor dos eventos que se atropelam
fazendo-nos expectadores incrédulos de acontecimentos de nossas próprias vidas.
O bom dessa questão é que fatos positivos podem se dar, e então navegamos em
momentos plenos e consequentes. Comigo aconteceu algo incrível que, de forma
quase irônica, ecoa agora, coroando uma vida dedicada ao ensino. No começo da
década de 1980, recebi convite que mudou minha vida e consequentemente a de
toda família. Em favor de melhor desempenho profissional, precisei fazer uma
opção arriscada: residia comodamente no interior, em Taubaté, onde atuava como
professor universitário, diretor de escola do então segundo grau. Na contramão,
caberia acatar a necessidade de me transferir, com mulher e filhos, para São
Paulo, onde era professor assistente na USP. Não me era mais possível manter os
dois postos e ficar dividido entre um lugar e outro.
Com
sofrimento, optei pelo mais difícil e me mudei para a capital. Logo que me
instalei, nova provocação se me apresentou: convite para ser Professor Visitante
em Stanford, na Califórnia, por um ano. Recusar tal oferta era algo impensável,
mas havia uma amarra dramática: meu pai estava em processo de diálise e me
queria sempre por perto. A pressão para responder ao convite era enorme e exigia,
unicamente de mim, posição rápida e
resoluta. Entre o futuro familiar e profissional e assistência ao pai me senti
partido. De um lado pesava a atração para passar um tempo numa das melhores
universidades do mundo, fato praticamente impensável na minha trajetória. A
possibilidade de permanecer junto do pai era relevante, mas tinha irmãos e
demais auxiliares que poderiam suprir minha ausência.
Na
premência de respostas, pesou o significado da viagem para os filhos e o
incentivo de mentores que avaliavam o sentido social do estágio. Optei por ir,
e com embargos informei ao meu pai. O imponderável aconteceu: viajei e em
seguida meu pai morreu. Creio que é fácil imaginar o que senti. Na mesma medida,
acho que dá para calcular o ganho geral, o avesso da dor. Estar em Stanford,
conviver com uma comunidade acadêmica daquela grandeza foi fundamental para a
grande virada ocorrida na experiência de todos meus familiares próximos e mesmo
de meus alunos.
Além
das questões particulares, cabe dizer que em termos contextuais passávamos pela
Abertura Política. A superação da ditadura colocava nas ruas multidões e na
vibração generalizada, achei maneira de participar estando longe. Fui um dos
organizadores da Comissão das “Diretas Já” na Costa Oeste dos Estados Unidos.
Assim, com vários colegas, planejamos marchas, fornecemos material para jornais
norte-americanos, fizemos várias apresentações em universidades. Cabe dizer que
minha mulher ainda era viva, os filhos pequenos e os sonhos iam se
engrandecendo com esperanças de amanhãs libertárias. A picardia do destino,
contudo, não parou por aí. Cresceu. Lá pela metade de minha participação em
Stanford, fui convidado para ficar, definitivamente, como professor estável, do
Departamento de História. Isso não é pouco coisa, creiam. Novamente se me
apresentava um desafio de efeitos consequentes e, como sempre, era urgente a
resposta: sim ou não. Confesso que foram dias atormentados, noites e noites sem
dormir, mas depois de muito ponderar, com certo medo do erro, recusei o convite.
Trinta
e quatro anos se passaram e nesse meio tempo, voltei a Stanford algumas vezes,
mas sempre por poucos dias, como convidado para eventos rápidos. Recentemente,
motivado pela articulação de amigos, se me apresentou a chance de nova visita,
desta feita por um mês. Aceitei com alegria. Uma cascata de lembranças,
contudo, se fez queda em minha memória, e exigiu de mim acertos íntimos.
Primeiro, fui invadido por recordações que elegeram o ano de 1984 como dos mais
felizes de minha vida. Lembrei-me de detalhes impressionantes, ângulos da casa
em que moramos, festas da escola dos filhos, compras em supermercados, passeios
maravilhosos em uma velha perua Datsun... Aos poucos, porém outras levas de
ponderações se impuseram e me obrigam a explicações: fiz escolhas corretas? Enquanto
entabulava respostas precisei reconhecer que o fator preponderante para o meu
retorno daquele sonho foi a utopia de novo tempo, de um Brasil recomposto. Eu
tinha que participar daquilo. Apostava tudo no processo político nacional. A
utopia de que nosso país daria certo era força inquebrantável que em mim suplantava
tudo. Foi ela que me moveu ao retorno definitivo para a USP. Trabalhei muito
para que o país desse certo. Ingressei em partido político, dei parte de meu
salário para financiar campanhas, fui a passeatas, escrevi sobre temas, enfim,
fiz tudo que podia. Tudo. Aos poucos, desavisado, fui percebendo que minhas
contribuições não eram lá tão relevantes, e sequer notei que meu partido ficava
a cada dia mais parecido com os demais.
Ver a utopia virar distopia dói muito. Demais. Ainda acredito em certas propostas que, contudo, carecem de caras capazes e forças capazes de realizações. E estou de volta a Stanford. Confesso que olhar para essas mais de três décadas é como ler comovido o livro da vida e se permitir chorar. Chorar sobretudo por um sonho que desbotou. Tomara que, num futuro próximo, eu consiga dizer que valeu a pena e que faria tudo outra vez.
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