terça-feira, 23 de janeiro de 2018

TELINHA QUENTE 293


Roberto Rillo Bíscaro

Dia 8 de dezembro a Netflix entregou a segunda dezena de capítulos de sua série mais cara, The Crown. Um show cuja protagonista está impedida constitucionalmente de protagonizar (leia resenha da temporada 1, onde isso é explicado) tinha tudo pra ser tão excitante quanto um hipopótamo passeando na lama.
Mas, a produção minuciosa, interpretações magistrais, roteiros nuançados e nosso fascínio pela Família Real somam um todo às vezes hipnótico, quase sempre muito sagaz e totalmente respeitoso com a figura de Elizabeth II. Quem a cerca pode ser um bando de esnobes privilegiados que reclamam de barriga cheia, como Philip e Margaret, mas Lilibet triunfa até sobre uma desbocada, debochada, drogada e dominada Jackie O. Aliás, finalmente John Kennedy foi representado como o cusão arrogante que era.
The Crown II vai de 1956 – quando a Grã-Bretanha foi internacionalmente humilhada com a crise do Canal de Suez – até 1964, quando nasce o Príncipe Edward, aquele que vive tendo que negar que não é gay.
Como a série sabiamente se chama A Coroa e a família disfuncional mais pública do planeta cresce, há espaço pra conhecermos melhor o Príncipe Philip, consorte da rainha; a Princesa Margaret, sua irmã que acendia um cigarro na bituca do outro; e o sensível Príncipe Charles, cuja infância foi infernal numa escola espartana no gélido norte escocês.
Peter Morgan faz exímio trabalho para que entendamos o que movia e dilacerava essas pessoas. O Príncipe Philip teve infância e adolescência abomináveis, então dá pra compreender sua personalidade e atitudes, o que não significa que necessitemos aprova-las ou mesmo gostar dele; pelo contrário, nos dá razões concretas pra justificar porque não dá pra apreciá-lo.
Uma das coisas que mais chama a atenção nessa temporada é como tem macho adulto branco privilegiado sempre se queixando, porque no fundo é inseguro e lotado de ódio. Sabe aquela coisa de tio-jurista véio endinheirado e branco chorando que heterossexual está perdendo direitos, sem falar exatamente quais são? Se você acha que isso é discurso “esquerdopata”, então Sua Majestade também é, porque é nesses termos que detona um de seus primeiros-ministros, chamando-o de fraco pra baixo.
O background Real de Philip sempre o fez saber muitíssimo bem qual seria seu papel ao se casar com Elizabeth – que ele voluntariamente cortejou – mas mesmo assim passa um tempão se lamuriando que não é reconhecido, nhém, nhém, nhém. Ah, vovozinho, seu “sofrimento” por isso não convence. Vai ser leiloado como escravo na Líbia pra ver se tu ia gostar! Eles não têm escolha; Philip teve. Margaret também.
Que fique claro que afirmo isso com base na ficcionalização dessa gente. Não me importa se na “vida real” deles ocorreu isso ou aquilo, assim ou assado. Interessa o que acontece e como essas personagens são construídas e mostradas em The Crown, uma série. Não é documentário, não é de verdade, please!
Pela idade e fragilidade, o único que não teve chance foi o pobre Charles. Nossa, dói ver o capítulo dedicado a seu relacionamento com o pai e o bullying enfrentado por longos anos. Mas isso é na temporada 2, depois quando virar adulto, ele terá mais liberdade de escolha, então que não venha com choraminguice de mártir sofredora! Quer dizer, pode vir, porque pra série dramática isso funciona, mas não espere que me compadeça como se fosse no caso dum diagnóstico de aneurisma cerebral.
Claro que essa profusão de gente (quase) abominável cercando Elizabeth, também executa o truque de desviar nossa atenção de suas culpas nos cartórios. No fim, tudo é construído pra que a Rainha se saia acima de todos moralmente. As escolhas intempestivas e o comportamento abertamente antipático de sua irmã naturalmente nos fazem apreciar mais a reserva cheia de “of courses” da Rainha e numa cena Lilibet alfineta que das 2, Margaret sempre fora a menos igualitária.

Mas eu não esquecera da cena, capítulos antes, quando a monarca é forçada a abrir Buuckingham prum jantar pra comuns numa espécie de sorteio de fim de ano pra jantar com a rainha, a fim de trazer o Coroa mais pra perto do povo. O roteiro põe todo o desprazer da situação na boca da Rainha-Mãe (uma víbora, segundo diria Diana, anos depois), num semimonólogo encharcado de ressentimento, orgulho ferido e impotência. Elizabeth nada diz, porque dominou a arte de não dar opinião até pra mãe. Boa desculpa do roteiro pra não admitir que quem cala, consente.

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