quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

TELONA QUENTE 218

Roberto Rillo Bíscaro

Graças à Disney e à Jeannie é um Gênio, temos visão bastante redutora e açucarada dos gênios da mitologia islâmica. Os jinna não são tão bonzinhos e engraçados como num desenho do Aladim.
Segundo uma lenda, os jinna foram criados dois mil anos antes de Adão e gozavam de elevada posição no Paraíso, meio como os anjos, mas provavelmente inferiores. Depois que Deus fez Adão, todavia, sob a liderança do seu orgulhoso líder Iblis, os gênios se recusaram a curvar-se perante a nova criatura. Pela má conduta, foram expulsos do Paraíso, tornando-se perversos e asquerosos. Iblis, que foi atirado com eles à Terra, tornou-se o equivalente do Satanás cristão. Fontes atestam que até podem ajudar o homem, mas especialmente quando lhes traz alguma vantagem.
Em seu excelente filme de estreia, o diretor iraniano radicado em Londres, Babak Anvari, usa a suposta habilidade dos gênios de se aproveitar da fragilidade humana para causar caos para imbricá-la com possíveis delírios experimentados por mãe e filha na repressora e bombardeada Teerã oitentista.
Naquela década, Iraque e Irã guerreavam e em 1988 muita gente abandonava a capital iraniana por medo dos misseis de Sadam Hussein. Viver assim e ser mulher numa sociedade onde podia levar chibatada caso saísse pra rua sem cobrir a cabeça, mesmo que estivesse em pânico por um bombardeio, era parte da pressão vivida por Shideh.
Parte, porque a jovem ainda tinha que conter seu espírito diferente. Ex-ativista política, havia sido expulsa do curso de medicina, o qual ansiava concluir pra satisfazer desejo da mãe recentemente falecida. Sob a Sombra (À Sombra do Medo, segundo algumas fontes) abre com funcionário da universidade dizendo que ela podia esquecer esse sonho.
Numa sociedade onde era prudente esconder aparelhos de videocassete, Shideh gostava de fazer aeróbica com os vídeos de Jane Fonda e curtia Yazoo, imagine que rebelde!
Quando o marido é convocado pra prestar serviços médicos num longínquo hospital de guerra, Shideh tem que ficar sozinha no apartamento com sua filha Dorsa, que possui bonequinha, que trata como se fora filha.
O primeiro ato de drama familiar, que expõe com cuidado os vários indícios de susceptibilidade a devaneios e fantasias, de ambas, lentamente cede lugar a thriller psicológico bem tenso, quando coisas misteriosas começam a ocorrer e não sabemos se são ação de um Gênio ou da cabeça estressada da mãe. Ou da filha.
Sob a Sombra é metáfora de como a repressão pode esmerilhar a psique feminina e o roteiro faz isso admiravelmente. Há que se notar o pavor da decepção na relação mãe e filha. Shideh teme ter desapontado a mãe e morre de pânico de não ser boa mãe pra Dorsa, a qual, embora sem entender muito bem as coisas, também vive sufocada por achar que não cuida bem da boneca, perdida durante boa parte do filme. O roteiro assemelha-se àquelas bonecas russas, que se encaixam uma dentro da outra, cada vez menores, mas idênticas fora isso.
Esse amontoado de neuras; o confinamento no prédio cada vez mais vazio; a profusão de sirenas, bombas, orações em alto-falantes; a fofoca e o medo de vizinhos supersticiosos, tudo vai se somando nesse filme opressivo, influenciado por Polanski, Guillermo Del Toro, Jennifer Kent (The Babadook), Hideo Nakata (porque a refilmagem de Dark Water, por Walter Salles não tem sal) e um bocadinho de Poltergaist, no final.
Bem atuado no idioma farsi, climático, denso, multicamadas, Sob a Sombra é um filmão e está na Netflix brasileira, olha que luxo.

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