quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

CONTANDO A VIDA 221

CINCO HISTÓRIAS DE VIDA. 

José Carlos Sebe Bom Meihy 

Como contador de casos, resolvi fazer uma pequena antologia de situações que mais me marcaram. É difícil separar ficção de realidade e, bem sei, muita gente já se derrotou no esforço definidor de fronteiras entre o real e o imaginário. A fim de simplificar tudo, optei por me valer do conceito provisório de “histórias referenciadas”. Certamente, os especialistas em narrativas irão me execrar, mas enquanto isso não ocorre me parece válida a tentativa de dize-las. 

História 1. Fui roubado certa feita. Havia chegado ao Rio de Janeiro e, como sempre, sentia entusiasmo por estar na “cidade maravilhosa”. Era noite e saí no encalço de um restaurante. Havia dado poucos passos na direção da praia quando avistei um casal de namorados trocando beijos. Enquanto felicitava a cena, ao passar por eles, fui puxado e... O rapaz, o namorado, pegou-me forte pelo braço e exigiu que lhe entregasse tudo. Naqueles dias não existia celular e então foi só a carteira. Fiquei aturdido, mas calmo e apenas pedi a foto de minha mãe. De nada adiantou minha suplica. Voltei imediatamente, com fome, sem documentos e triste, pois aquele era o único registro que tinha do rosto materno. Enfim, consolei-me: vão-se os anéis, mas ficam os dedos. Surpresa absoluta, no outro dia, na portaria estava a minha espera o aludido retrato com um bilhete do larápio “devolvo a foto de sua mãe e seus documentos, boa sorte”. 

História 2: Convidado para uma apresentação em Aracaju, Sergipe, estendi a estada para mais alguns dias a fim de ver uma famosa vaqueja na cidade de Porto da Folha, distante cerca de 4 horas de carro. Ao chegar soube de uma ilha onde os indígenas Xocó, isolados em sua aldeia, recondicionam a própria cultura. Resolvi conhecer aquela experiência comunitária. Cerca de meia hora de barco pelo Velho Chico, tive oportunidade de me sentar ao lado de um indígena que carregava uma galinha e um galo. Quis saber porque e então ouvi que não mataria os animais e que nem era pelo ovo. Atento, ele disse que era pela beleza daquelas duas aves pouco conhecidas deles. De repente, me vi olhando para a galinha e para o galo e notei suas penas brilhando, os movimentos diferenciados permitidos pela mobilidade de seus pescoços. Frente a isso me perguntei dos critérios de beleza de minha cultura, e achei os indígenas mais civilizados e com olhar estético mais aguçado. 

História 3. Certa feita, gravando entrevistas sobre “rituais de passagem”, ouvi uma história que chama minha atenção até hoje. Era um garoto suburbano, moleque feio, com muita espinha rosto afora, pobre, solitário, sempre maltrapilho. Sentados ao acaso em banco de praça no interior mineiro, começamos a conversar e tive que responder a ele explicando que era pesquisador e me interessava pelas narrativas sobre “primeira vez”. Troquei em miúdos até me fazer entender. Como resposta, ele contou o caso do primeiro beijo que dera na moça mais cobiçada da região. Por bonita, era bastante disputada, e famosa por rejeitar os bons partidos, “muito das granfas” resumia. Um dia, ao entregar garrafa de água em sua casa, ele foi recebido por ela que, por iniciativa própria, o convidou para entrar e, no vazio da casa vazia, o beijou por muito tempo. Ele que nunca havia experimentado algo parecido agradecia a escolha e o carinho da moça que nunca mais sequer o cumprimentou. Ele também lhe era grato, mas garantiu que não houve paixão “foi só gostosura”. 

História 4. Franzina e silenciosa, de alguma maneira ela chamava a atenção das colegas de classe. Sempre nos intervalos das aulas lia, interessadíssima, para si mesma, cartas recebidas. A repetição do gesto fez com que a imagem da leitora inquietasse a rotina geral. Um dia, portanto, foram-lhes cobradas explicações. Como abelha rainha, então, cheia de si, prometeu trazer a pequena coleção de envelopes com seus conteúdos amorosos. No outro dia, apresentou dezenas de cartas devidamente seladas. Leu algumas sorteadas e a revelação de um amor incontido chamou a atenção. Não escapou, porém, a identificação da letra pela qual se viu que ela mesma enviava para si. Descoberta, não voltou mais à sala. E mudou de escola. 

História 5. Na cidade pequena, no interior de São Paulo, suicídio era assunto para semanas. Aquele, porém, demorou mais. Uma jovem, de fora da cidade, no dia dos namorados, foi ao cemitério local e ingeriu dose fatal de veneno de rato. Na solidão da tarde que morria, ela veio a falecer sozinha. Rumores se multiplicavam e a ausência de informações fermentava a imaginação coletiva. Histórias se multiplicaram: amor não correspondido, doença grave, alguma violência sem paga, enfim, muito foi aventado até que, dias depois, alguém encontrou uma bolsa caída entre dois bancos da igreja ao lado, e nela uma folha dobrada, com uma única palavra: “cansei”.

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