O
PIADISMO POLÍTICO E AS LIÇÕES DO QUARUP.
José Carlos Sebe
Bom Meihy
Para Paulo
Pereira
Em
meio a tanto trabalho intelectual e condução de projetos acadêmicos, frente a
viagem profissional, para variar um pouco, optei por escolha de romances.
Juntei com cuidado alguns volumes que achei de leitura conveniente, coloquei-os
na mala e atravessei o hemisfério. Foi bom chegar e tirar da bagagem livros de
Machado de Assis, Cony, Clarice e Callado. Pronto, nas horas vagas, teria
combustível para uma boa batalha de revisão crítica, literária e prazer de
releituras fecundas. Com a certeza de que ninguém passa impune por uma seleção
dessas, ao cabo da leitura de “Quincas Borba”, de Machado de Assis, escrevi uma
crônica “Ao vencedor as batatas”. Minha proposta era simples: transpor o mote
da vitória dos mais fortes, para a crítica discursiva sobre a derrota do
recurso de Lula em janeiro último. Só isso. Não pretendia defender ninguém. De
forma alguma, até porque as estatísticas eleitorais são eloquentes. Minha
perplexidade corria por conta de outros autores, alguns teóricos, em particular
de Noam Chomsky. Pois bem, o texto foi publicado e, por um comentário em
especial, percebi que não me fiz entender adequadamente. Isso me preocupou,
posto ter optado por também me referir, na mesma linha da abordagem anterior,
pelo filtro de outro autor, tendo como pretexto o “Quarup”. Pensei, e mesmo
temendo repetir dissonância, resolvi ir em frente, a exemplo da valentia de Antonio
Callado – que foi preso duas vezes, perseguido, exilado e torturado pela
ditadura. A homenagem àquele exemplo, exigia que eu fosse em frente. Assumindo
ser mais claro, dei continuidade a proposta inicial. Optei por seguir o mesmo
esquema: falar um pouco do conteúdo e destilar ideias de fundo ético ou moral.
Ainda
que muitos não considerem “Quarup” entre os melhores livros de Callado, figura
como um dos meus favoritos. A história, publicada em 1967, se passa entre 1950,
segue até o golpe militar de 1964 e seus primeiros desdobramentos. O personagem
central é um atormentado padre que, por fim, deixa a batina para entrar na luta
armada. A tensão extraordinária gerada pelas aventuras de Nando mostra a
complexidade das personalidades divididas entre projetos salvacionistas, a
frustração utópica e o desregramento ou desmontagem da crença política. Na saga
que se desenrola rápida e perfilada por acontecimentos históricos – a criação
do Parque Nacional do Xingu, o atentado a Carlos Lacerda, o Golpe de 1964 –, ainda
no mosteiro, o noviço se apaixona por Francisca, moça linda, rica e noiva de
Levindo. Atormentado por fantasias, para fugir dos pecados, opta por viver
entre os índios do Xingu, não sem antes ter caso ardente com uma jovem inglesa,
Winifred. Ainda religioso, viveu também um turbilhão no mundo de drogas, álcool
e sexo clandestino. Nando, apesar de tudo, prosseguia em sua missão, e por fim,
já liberto do sacerdócio torna-se guerrilheiro. Sua obsessão por Francisca
continuou e teve lances próximos de uma tragédia. Toda trama, porém seria
explicada segundo a cadência da crescente repressão do governo ditatorial.
Grande parte da história tem a floresta como espaço simbólico de um Brasil
metaforizado pela barbárie política.
A
par do movimentado enredo, a atenção cuidadosa dada por Callado a um festival
dos indígenas do Xingu, o Quarup, é comovente. Entre tantos detalhes do
complexo cerimonial, alguns são dignos da melhor antropologia, e, com destaque,
tem-se a descrição do “huka-huka”, luta muito rápida que ocorre no meio da
celebração dirigida aos mortos – este, aliás, é o mais importante evento dos
indígenas do Xingu. O enternecedor na luta é que o vitorioso não pode humilhar
o adversário. O respeito pela dignidade alheia, pela sua integridade física, é
a regra sagrada. Tal postura, diga-se, eleva o ganhador à condição de
deferência e à qualificação do mérito da vitória frente a comunidade. É
exatamente sob a atmosfera dessa narrativa que penso nas lições oferecidas por
Callado.
Confesso
que ando esbarrando na depressão sociológica. Quando vejo em listas das redes
sociais as piadas deferidas contra os perdedores, fico inquieto e indeciso
entre a surpresa e o desengano. Levo em conta nesses casos, a procedência de
quem posta as tais mensagens e assim sofro ainda mais. E então me perco em mim
mesmo, pois não é raro, identificar que as mesmas pessoas mandam “bons dias”,
falam de anjos, emitem notas em campanhas beneficentes. Tenho que admitir que
há um toque de humor na intenção das pessoas, mas quando vejo os desdobramentos,
em particular os comentários reforçando sátiras dispensáveis, admito que,
definitivamente, não entendo mais o mundo.
Ainda
bem que Callado escreveu “Quarup”. Ainda bem que mesmo tendo que admitir a
força da distopia eu possa pensar que em algum lugar da selva brasileira existe
um ritual de luta e de respeito. Ah!... Que bom seria se pudéssemos reinventar
o Brasil e aprender com os índios que mais importante que vencer, é não se
vingar, e se engrandecer com a vitória sobre o outro.
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