Roberto Rillo Bíscaro
Entre a geração tremendona da Jovem Guarda e a abelhuda
selvagem oitentista, há mais de uma década de rock brasileiro praticamente
desconhecido do grande público e da academia. Salvo exceções como os Secos
& Molhados, os roqueiros setentistas são bem invisíveis hoje e, na época,
não tiveram grande divulgação, porque incomodavam a ditadura e também setores
da esquerda. Como cantou Rita Lee, em 1980: “roqueiro brasileiro sempre teve
cara de bandido”. Era essa a geração a que se referia a letra de Orra,
Meu.
Em 2008, o historiador Alexandre Saggiorato contribuiu
para começar a desbravar a mata virgem desse período musical no país, com sua
dissertação de mestrado Anos de chumbo:
rock e repressão durante o AI-5.
A ideia central de Saggiorato é que mesmo não tendo
adotado postura explicitamente antirregime militar, as bandas de rock dos 70’s
transgrediram comportamentalmente com seus cabelões; alusões ao consumo de
drogas; opção por viver em comunidades, como seus ídolos hippies e mesmo nas
letras, que, falando muitas vezes em liberdade, podem servir de metáfora para a
repressão da ditadura. Considerando-se que liberdade, como tema genérico,
esteve sempre presente em letras de rock, as análises das letras são os pontos
mais discutíveis do trabalho, mas isso não depõe contra a dissertação. Letra de
música é para ser polissêmica mesmo.
Mesmo focando especificamente o trabalho de apenas três
bandas (Novos Baianos, Casa das Máquina e O Terço), o texto traz exemplos e
informações de muitas outras, como Recordando o Vale das Maçãs, Módulo 1000,
Raul Seixas e tantos mais.
A fim de situar o leitor nos debates e embates
ideológicos que rolaram nos 70’s, Saggiorato tem que voltar ao tempo da Bossa
Nova, quando a música popular se fracciona, grosso modo, em setor engajado
politicamente e setor não, que na década de 60 e setenta seria chamado de
alienado pela esquerda. Esse levantamento de antecedentes feio pelo autor será
muito útil para quem entende bossa-novistas ou hippies como grupos unívocos. Havia
bossa-nova sobre patos quén-quén, mas também sobre a falta de vez do morro.
Tinha hippie natureba, hippie junkie, hippie modinha....
O acirramento da repressão ditatorial, com o famigerado
AI-5, de 1969, radicalizou também o relacionamento e o patrulhamento das
posições políticas dos artistas, especialmente dos mais populares. Havia que
ser a favor ou contra o regime; não pegava bem ser neutro, ou “apolítico,
bicho”, como afirmou Roberto Carlos certa vez.
Assim, os milicos perseguiam, censuravam e intimidavam
cantores cujas letras eram percebidas como revolucionárias. E as esquerdas
patrulhavam quem fizesse sucesso para que fosse engajado. Quem não tinha
penetração midiática elas não davam bola, de modo geral.
Os roqueiros – psicodelia, hard rock e progressivo
foram os subgêneros dominantes na cena brasuca da década – eram vistos com
desconfiança pelos dois lados. A direita os achava vagabundos maconheiros
subversivos e parte da esquerda os considerava vagabundos maconheiros
alienados. Saggiorato tenta provar que não era bem assim. Á sua moda, nossos rockers lutaram contra o sistema. Há
horas em que o autor passa uma ideia de que estivessem “fora do sistema”, outro
ponto muito discutível; como seria isso possível? Dissidências são possíveis,
claro, e possíveis pelo próprio sistema, mas estar fora dele implica não participar
de nada do que lhe diz respeito. Complicado.
Repleto de histórias e de texto fluido e acessível
mesmo para leigos, Anos de chumbo: rock e
repressão durante o AI-5 pode ser baixada no link:
Esse livro, que é a dissertação de mestrado do autor, tem 10 anos. Muito me alegrou lê-lo, porque, de certa forma, ele endossou o que eu sempre pensei: não dá, como não dava, pra ficar do lado de coxinhas-paneleiros fã de Bolsonaro, bem como do lado de petralhas-mortadelas defensores do PT, os dois lados são muito ruins, ruins demais. Ser roqueiro (como você disse, psicodélicos, progressivos hard rockers) naquela época deveria ser difícil mesmo: a direita considerando-os maconheiros vagabundos subversivos, e a esquerda enxergando-os como maconheiros alienados americanizados. Orgulho de ser assim: apanhar dos dois lados e não estar alinhado com nenhum dos dois. Isso sim é estar fora do sistema.
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