sexta-feira, 2 de março de 2018

PAPIRO VIRTUAL 124




Roberto Rillo Bíscaro

Parte considerável de meu repertório pop-rock dos anos 70/80 veio das trilhas-sonoras da Rede Globo. Sempre preferi as internacionais – não estava sozinho; eram as que vendiam mais mesmo – e foi nelas que ouvi pela primeira vez Manu Dibango, The Style Council e Matt Bianco. Conforme envelheço, parece que aumenta a frequência com que assobio Free For All, da Free Sound Orchestra (Orquestra Som Livre, duh!), da trilha da novela Carinhoso (1973-4). Dá sensação de solidão, porque duvido que muita gente se lembre, mas também transporta gostoso pra idealizado passado.
Puramente afetiva minha motivação pra ler a tese de doutoramento Na barriga da baleia: a Rede Globo de televisão e a música popular brasileira na primeira metade da década de 1970, defendida por Eduardo Henrique Martins Lopez de Scoville, na UFPR, em 2008.
Abordando seu tema dentro da perspectiva da indústria cultural, o historiador nos mostra como a Globo transformou a indústria fonográfica brasileira, praticamente inventando um modelo só nosso, desenvolvido a partir de seu produto mais rentável e popular: a telenovela, que nas décadas de 70/80 chegava a níveis de audiência perto de 100% em capítulos-chave.
Durante os anos 1960, quem comandou a TV brasileira foram as TVs Excelsior e Record, que apostavam alto em programas musicais ou festivais da canção, especialmente em meados da década. Na madrugada dos anos 1970, não apenas o modelo estava saturado, como a ditadura calara os compositores-chave da MPB. E a Globo se transformava num modelo moderno e pragmático de empresa, onde questões como duração cronometrada das atrações, maior controle de conteúdo (não era boa ideia surpreender os milicos com subversões improvisadas, ainda mais a Globo!) e a adoção do decantado Padrão Globo de Qualidade importavam imenso e mostravam bons resultados, pois em 1970, a Vênus Platinada já era líder.
As trilhas-sonoras das novelas passaram a ser o modo como a emissora lidaria com a música. No início, contratando músicos pra compor as trilhas nacionais e, de meados dos 70’s adiante, adquirindo fonogramas de outras gravadoras, mas lançando as lucrativas trilhas na própria gravadora da emissora, a Som Livre, indefectível nos intervalos comerciais e na lista de mais vendidos durante décadas.
Essa simbiose entre as indústrias fonográfica e televisiva provaria apetitosa pra todo mundo: pra Globo que lucrava com as telenovelas em várias frentes; pras gravadoras, que podiam esperar aumento de vendas nos álbuns dos artistas, cujas canções fizessem parte duma trilha bem-sucedida e pro público não especialmente interessado em música, mas em consumir sucessos.
Escrita de modo fluido e evitando tediosas discussões teóricas, a tese tangencia também a formatação do programa Globo de Ouro e dos clipes do Fantástico. Quem viveu lembra de seu poder: literalmente, da noite dum domingo, pra manhã duma segunda, a Blitz virou mania nacional, depois do Fantástico exibir o clipe de Você Não Soube Me Amar, em 1982. Ainda lembro de comentarmos excitados sobre a canção na escola, na manhã seguinte.
Agora que consagrados da MPB já estão até passados do ponto, quase surpreende lembrar que Chico, Caetano, Gil, Ivan Lins, Milton, Djavan, Gal, Elis, não são da mesma geração. O vácuo deixado pelo AI-5 é que possibilita a ascensão de Lins (sempre global que só ele!) & Milton & Cia. E como não achar graça ao ler que um executivo da emissora disse que apesar da “caipirice e irrelevância” da obra de Milton Nascimento, até que dava pra aparecer no programa, onde foi vaiado pelo público classe-média cabeça culturete engajete universitário otário. Aparecer no Fantástico 7 vezes em 4 anos é algo alternativo? Então, pense bem antes de dizer que Raul Seixas o era, porque ele vivia na Globo.
Não digo que ler textos assim seja pra achincalhar a memória de artistas, mas são prazerosos, além de educativos. Não custa lembrar que a mesma Elis que tanta gente idolatra pelo engajamento d’O Bêbado e o Equilibrista, há 4 anos cantara em patriotada cívica patrocinada pelos militares. Ela diz que foi obrigada, mas seu empresário afirma outra coisa. Cachê altíssimo, beibi dól de náilon! Não se trata de jogar pedra na Elis, mas de posicionar eventos e pessoas em dimensões mais reais.
 E fique com papel e caneta ao lado pra anotar um monte de artistas e canções já esquecidas, mas qual o maior barato desses textos senão permitir tal arqueologia?
Na barriga da baleia: a Rede Globo de televisão e a música popular brasileira na primeira metade da década de 1970 encontra-se disponível pra leitura/download grátis, no link:


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