Roberto Rillo Bíscaro
Parte considerável de meu repertório pop-rock dos anos
70/80 veio das trilhas-sonoras da Rede Globo. Sempre preferi as internacionais
– não estava sozinho; eram as que vendiam mais mesmo – e foi nelas que ouvi
pela primeira vez Manu Dibango, The Style Council e Matt Bianco. Conforme
envelheço, parece que aumenta a frequência com que assobio Free For All, da
Free Sound Orchestra (Orquestra Som Livre, duh!), da trilha da novela Carinhoso
(1973-4). Dá sensação de solidão, porque duvido que muita gente se lembre, mas
também transporta gostoso pra idealizado passado.
Puramente afetiva minha motivação pra ler a tese de
doutoramento Na barriga da baleia: a Rede
Globo de televisão e a música popular brasileira na primeira metade da década
de 1970, defendida por Eduardo Henrique Martins Lopez de Scoville, na UFPR,
em 2008.
Abordando seu tema dentro da perspectiva da indústria
cultural, o historiador nos mostra como a Globo transformou a indústria
fonográfica brasileira, praticamente inventando um modelo só nosso,
desenvolvido a partir de seu produto mais rentável e popular: a telenovela, que
nas décadas de 70/80 chegava a níveis de audiência perto de 100% em
capítulos-chave.
Durante os anos 1960, quem comandou a TV brasileira
foram as TVs Excelsior e Record, que apostavam alto em programas musicais ou
festivais da canção, especialmente em meados da década. Na madrugada dos anos
1970, não apenas o modelo estava saturado, como a ditadura calara os
compositores-chave da MPB. E a Globo se transformava num modelo moderno e
pragmático de empresa, onde questões como duração cronometrada das atrações,
maior controle de conteúdo (não era boa ideia surpreender os milicos com
subversões improvisadas, ainda mais a Globo!) e a adoção do decantado Padrão Globo
de Qualidade importavam imenso e mostravam bons resultados, pois em 1970, a
Vênus Platinada já era líder.
As trilhas-sonoras das novelas passaram a ser o modo
como a emissora lidaria com a música. No início, contratando músicos pra compor
as trilhas nacionais e, de meados dos 70’s adiante, adquirindo fonogramas de
outras gravadoras, mas lançando as lucrativas trilhas na própria gravadora da
emissora, a Som Livre, indefectível nos intervalos comerciais e na lista de
mais vendidos durante décadas.
Essa simbiose entre as indústrias fonográfica e televisiva
provaria apetitosa pra todo mundo: pra Globo que lucrava com as telenovelas em
várias frentes; pras gravadoras, que podiam esperar aumento de vendas nos
álbuns dos artistas, cujas canções fizessem parte duma trilha bem-sucedida e
pro público não especialmente interessado em música, mas em consumir sucessos.
Escrita de modo fluido e evitando tediosas discussões
teóricas, a tese tangencia também a formatação do programa Globo de Ouro e dos
clipes do Fantástico. Quem viveu lembra de seu poder: literalmente, da noite
dum domingo, pra manhã duma segunda, a Blitz virou mania nacional, depois do
Fantástico exibir o clipe de Você Não Soube Me Amar, em 1982. Ainda lembro de
comentarmos excitados sobre a canção na escola, na manhã seguinte.
Agora que consagrados da MPB já estão até passados do
ponto, quase surpreende lembrar que Chico, Caetano, Gil, Ivan Lins, Milton,
Djavan, Gal, Elis, não são da mesma geração. O vácuo deixado pelo AI-5 é que
possibilita a ascensão de Lins (sempre global que só ele!) & Milton & Cia.
E como não achar graça ao ler que um executivo da emissora disse que apesar da “caipirice
e irrelevância” da obra de Milton Nascimento, até que dava pra aparecer no
programa, onde foi vaiado pelo público classe-média cabeça culturete engajete universitário
otário. Aparecer no Fantástico 7 vezes em 4 anos é algo alternativo? Então,
pense bem antes de dizer que Raul Seixas o era, porque ele vivia na Globo.
Não digo que ler textos assim seja pra achincalhar a
memória de artistas, mas são prazerosos, além de educativos. Não custa lembrar
que a mesma Elis que tanta gente idolatra pelo engajamento d’O Bêbado e o
Equilibrista, há 4 anos cantara em patriotada cívica patrocinada pelos
militares. Ela diz que foi obrigada, mas seu empresário afirma outra coisa.
Cachê altíssimo, beibi dól de náilon! Não se trata de jogar pedra na Elis, mas
de posicionar eventos e pessoas em dimensões mais reais.
E fique com
papel e caneta ao lado pra anotar um monte de artistas e canções já esquecidas,
mas qual o maior barato desses textos senão permitir tal arqueologia?
Na
barriga da baleia: a Rede Globo de televisão e a música popular brasileira na
primeira metade da década de 1970 encontra-se disponível pra
leitura/download grátis, no link:
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