ÓDIO
CHIQUE ou PEQUENA ODE PARA MARIELLE.
José
Carlos Sebe Bom Meihy
Foi
o jornalista Élio Gaspari quem cunhou o termo “ódio chique”. Antes, em inglês,
falava-se em nowadays hate. A
campanha do presidente eleito nos Estados Unidos, Donald Trump, viralizou o
jargão, incendiando ânimos favoráveis à uma suposta manutenção da ordem
tradicional. Na oposição, grupos progressistas argumentavam contra o propalado
estado de coisas que, segundo conservadores, deveria permanecer inalterado.
Jornalistas do mundo todo, gradativamente, aliavam a modalidade comportamental
das elites às novas manifestações de distância dos grupos que, mecanicamente,
passavam a ser vistos como “de esquerda”. Assim, velhas bandeiras são
levantadas em nome da moral e bons costumes, da família formatada em moldes
convencionais, de combate irrestrito ao chamado politicamente correto. Em
campanhas que vão desde a explicitação de argumentos arcaicos até o exaustivo
“piadismo”, elaborou-se um programa com base no ódio às diferenças e pavor de
mudanças.
Assumindo
que a luta pelos direitos humanos é baderna, a direita passou a rezar que as
causas feministas e antirracistas se constituem em patrulhamento. Por lógico,
temas favoráveis às orientações de gêneros, ao aborto, ao controle da imprensa,
integram tais prescrições. Dimensão imediata disso, ficam transparentes
atitudes machistas, elitistas, anticotas, ou contrárias ao reconhecimento das
proporcionalidades representativas em instituições. Sem disfarce, emergem os
mandamentos do neoliberalismo que carrega em seu enredo a diminuição do papel
do estado, o empreendedorismo dos que tem poder, a livre iniciativa e o combate
ao acolhimento dos imigrantes.
Há
um ardil comum colocado ao dispor dos grupos mais preocupados com a
inevitabilidade da agenda contrária. Os dispositivos digitais estão ao alcance
de muitos. A internet, nesse sentido, torna-se arma perigosa na disseminação de
notícias e na manipulação das ideias convenientes. As redes sociais, sem que se
percebesse, se tornaram vias explosivas, em particular porque municiam com embustes
fatos e fabricam notícias reverenciadoras de acontecimentos duvidosos. As
chamadas fake news tomaram-se donas
das “notícias” e passaram a se valer da inocência, ou excesso de credibilidade,
dos menos críticos e virou recurso difusor. Não bastassem as informações
difamatórias, mais recentemente despontaram as fake fictions, seriados supostamente documentados que remetem a
situações maquiadas, dando às supostas tramas impressões continuadas, com
começo, meio e fim (ah! Os fins são sempre os esperados). O tal ódio chique,
então, ganha vocação legendária e se alimenta da reposição de casos.
É
lógico que a direita tem mais campo de ação nessa façanha. Como detentores de
programas computacionais potentes, com o domínio das fórmulas decisórias e de
propagação, tudo aliado a um público sem preocupação com o juízo ou veracidade,
faz com que os opositores, no máximo, consigam desmentidos. Aliás, essa
estratégia tem funcionado, pois mediante a magnitude dos fatos inventados,
torna-se praticamente impossível erguer oposições. Mas não basta também
detectar o problema. Os exemplos clamam por disputas de esclarecimentos.
Tomemos, pois como parâmetro o caso Marielle Franco, vereadora do Rio de
Janeiro, assassinada brutalmente, em pleno exercício de suas funções políticas.
Nem é preciso começar pela incapacidade da polícia na elucidação do crime. Em
todos os níveis, a perícia tem se revelado incompetente. Além de ser
constrangedor, preside o “deixa disso”. O conteúdo das mensagens a favor do
silenciamento do caso vão desde a “mudança de assunto” até as campanhas contra
os bandidos sociais eleitos como contraste. Há porém um argumentos ainda mais
venenoso: o novo “arregramento jurídico”. Ter sido ou não “crime político” é
definição vital para a qualificação dos perpetradores. O inaceitável “crime
comum” é dos mais graves acintes à norma jurídica. Lembrando que o tema foi abordado, em termos
filosóficos por Hannah Arendt, fica claro que qualquer ato contra alguém em
situação de defesa de mandatos de representatividade é passível de
diferenciação de situações ditas corriqueiras. Desqualificar o assassinato da eleita,
mulher, negra, lésbica, favelada, em favor da inscrição em atos que se banalizam,
infelizmente, é mais uma ofensa ao Legislativo. Equiparar sua morte a de
soldados ou de outros civis, brancos ou não, é simplificar tudo e debelar as
fronteiras entre a representatividade política e o direito cidadão comum.
Os
efeitos do “ódio chique” atuam exatamente na seara do “deixa disso”, do “cansei”,
ou do “é tudo igual”. É fácil identificar quem maneja as opiniões e os incautos
que as divulgam e depois propõem esquecimento. Curiosamente, não foram as
oposições que mais alardearam contra as fake
news difamatórias da promissora moça morta. Como que vingança de tantos
absurdos, quase que instintivamente, como tomando consciência, segmentos
insistem no protesto e grita: Marielle vive, está presente, exige resposta e se
coloca como alerta. Não cabe “elegância” quando o direito representativo é
atingido em sua essência. É sim “crime político” e queremos saber quem a matou.
PS. Depois de escrita a crônica notei a
aproximação entre a palavra “ódio” e “ode”. Ironia vernácula, apenas isso.
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