SOMOS TODOS SACIS... SOMOS?...
José
Carlos Sebe Bom Meihy
Muitos acompanham o esforço de grupos que valorizam a
originalidade do chamado folclore nacional. Os mais entusiasmados preferem até
dizer “mitologia brasílica”, evocando diretamente Monteiro Lobato no arguto
empenho de caracterizar algumas tradições como fundamento do nosso
nacionalismo. Desde a publicação do primeiro livro do escritor taubateano “Sacy
–pererê: resultado de um Inquérito” (anterior a “Urupês” que saiu no mesmo ano,
em 1918), ficou estabelecido o uso de comemorações folclóricas como referência
identitária. Essa prática, aliás, foi comum a vários estados nacionais no
século XIX, e teve seu auge no nazismo, momento em que Hitler exponenciou as
lendas como base da autenticidade cultural germânica. É conveniente lembrar que
diversos países, à época, escolheram seus tipos padrões e em locais como o
México, o sombrero foi eleito como
marca, assim como na Espanha a dançarina de flamenco e o touro, e, em Portugal o
bigode e a Torre de Belém. Por lógico, os ritmos musicais também acompanharam a
tendência e assim como o samba, a rumba, a cúmbia, o tango, o fado, se
apresentaram como atestados icônicos de “nações”. Ao mesmo tempo, os símbolos
nacionais como bandeiras, brasões, cores combinadas e hinos passaram a ser
cultivados como prova de amor à pátria. Até hoje tal tradição vigora, e as
raízes autoritárias insistem nas mesmas práticas ditas “patrióticas”. É fácil
perceber posicionamentos políticos autoritários apoiados no uso dos símbolos
nacionais com exaltação à bandeira, ao hino, às cores verde e amarelo.
Entre nós, o funcionamento destas tradições inventadas
teve sequência histórica original. De largada, o Saci virou moeda de troca de
tradições reaquecidas no projeto modernista brasileiro, em particular da década
de 1910 e seguinte. Autores como Lobato, Mario e Oswald de Andrade, entre
outros, trataram de caracterizar o que seria nacional/brasileiro, ainda que
segundo orientações ideológicas diferentes. E nesse arco se deu o constructo da
identificação de “coisas nossas”. Com o passar do tempo, o Saci advindo de
lendas difusas, abstratas, foi se reorientando até se transformar em uma
espécie de atestado do que somos: bonzinhos, gentis, meio malandros, dóceis.
Esse sutil ponto gregário teve, contudo, longa estrada, pavimentada por
situações que levaram a uma orientação cultural capaz de dar sentido e forma a
figuras que passaram a nos representar. E foi por ocasião do “Inquérito sobre o
Saci” (1917/18) que tais condições se materializaram. Lobato ao reunir
narrativas contadas por leitores do Jornal O Estado de São Paulo, assinalou um
ponto de inflexão entre a oralidade e a escrita, apresando nesta as variações
do “diabrete”. Publicado o “Inquérito”, em 1921 outro livro, dessa feita, para
crianças “O Saci” no qual estavam caracterizadas as imagens figuradas do Saci
com algumas marcas que permaneceram: uma perna só, negro, com um pito na boca e
gorro vermelho.
Também foi Monteiro Lobato o primeiro a adocicar o Saci
que, de diabólico, foi logo tratado como malandrinho e, de mau, perverso,
sinistro, virou arteiro, traquinas, enfim, brasileiro como todos nós. Mas, desde
o início e promovido pelo próprio criador da figura do Saci moderno, as
transformações continuaram até que ele acabasse por ser um dos recursos
pedagógicos, lúdicos, mais usados em escolas para crianças. Fica claro, pois,
que a maneira política de apropriação do Saci foi das estratégias mais
eficientes de nossa cultura, e o uso do ente simpático virou questão
pedagógica, postas à mesa da manipulação ideológica da sociedade que, afinal,
deveria ser guardiã das transformações. Juntamente com a simplificação para
crianças, no universo adulto, o Saci continuou sua trajetória, chegando mesmo a
ser adotado como mascote de time de futebol (Grêmio). Convém, aliás, lembrar
que tal estratégia ganhou foros de debate público nacional quando Mouzar
Benedito, em 2014, o propôs como símbolo da Copa do Mundo e Juca Kfouri o
refutou. Isso sem falar de referência a escolas de samba, nome do foguete
interplanetário brasileiro, marcas de furadeiras, e de alimentos e bebidas,
denominação de estabelecimentos comerciais.
Mas há outro ângulo interessante colado nessa reflexão.
Ao mesmo tempo em que Lobato colocava na cena nacional tais situações, alguns
dos ensaios fundamentais da brasilidade ganhavam respeitabilidade acadêmica.
Duas propostas, ou mitos, vigiram preferências: a democracia racial (Gilberto Freyre) e o homem cordial (Sérgio Buarque de Holanda). Desdobramento natural
desses pressupostos, o tal do jeitinho
brasileiro de ser (Roberto DaMatta) ganhava corpo explicativo de nossas
alternativas comportamentais. Nesse sentido, é cabível a pergunta: mas como o
Saci figurou nessa história? E a resposta caminha pela identificação com os
atributos que, hipoteticamente, nos distinguem: uma sociedade sem luta de
classes, com aceitação racial transitável, bem como cruzamentos de gênero e
religião. E vejamos que o Saci serve para tudo, em particular por mostrar que
de negro ele se torna mulato, de violento ou ruim, vira bonzinho, de feio ou
apavorante, se transforma principalmente em bonequinho feito para crianças.
Como se vivêssemos em uma democracia racial, cordialmente teríamos fatores para
negociações que, afinal, nos exibem como sem lutas, guerras, conflitos.
Pensando nas metamorfoses do perneta cabe perguntar: Saci nos representa? Somos
todos Sacis?
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