VAMOS
FALAR DE ALZHEIMER...
José
Carlos Sebe Bom Meihy
Somos
mortais, é muito bom não esquecer. Mas, quando justamente o esquecimento
torna-se matéria relativa a o drama final da existência, tudo se emaranha, e,
de maneira instintiva, em atropelos defensivos, sentimos o peso da mão que
apaga a fantasia da eternidade. E ficamos quietos, atônitos, perdidos. O silêncio,
nesses casos, é cruel e tudo fica ainda mais sinistro quando constatamos que a
cultura consagra a lembrança como meta. É assim que, como patologia pessoal e social,
a erosão da memória de um ser humano se transforma em espetáculo impiedoso, e
coloca o conjunto familiar em cenas dantescas, horripilantes mesmo. E
desconhecidas.
Calcula-se
que atualmente existam em nosso planeta cerca de 800 mil pessoas acometidas do
chamado Mal de Alzheimer. Avalia-se que em 2050 serão 135 mil. Tudo se complica
na medida em que a longevidade ganha terreno - vivemos muito mais do que nossos
antepassados -, e os avanços da medicina multiplicam sucessos afeitos a
sobrevivência. No rastro dessa trajetória, o Alzheimer alça protagonismo, pois acometendo
pessoas com mais idade impõem diferenças de outros males comuns a senilidade.
Antes falava-se de demência em geral, hoje sabe-se de especificidades. Diagnosticada
pela primeira vez em 1906, pelo psiquiatra alemão Alois Alzheimer – que a
descreveu como “uma doença peculiar” – demorou-se muito para que a comunidade
médica a distinguisse do simples desgaste ou degenerescência. Aos poucos,
insidiosamente, como visita impregnante, sua presença indesejável vem se fazendo
notar, a cada dia mais próxima de nós. E demorou para ser entendida. Entre os
fatores que atrapalharam as indicações do Dr Alzheimer situava o prestígio das
teorias de Freud que àquela altura encantavam plateias com detalhamento do
inconsciente, id, ego, superego, complexo de Édipo. Alzheimer, por sua vez,
partia de uma corrente menos sedutora, e defendia que toda variação do que se
conhecia como demência ou senilidade crônica tinha como raiz um fundamento
biológico.
E
foram precisos nomes ilustres para que a sombra dessa amedrontadora “nova
doença” se anunciasse mundo afora: Rita Hayworth, Charlton Heston, Margareth Thatcher.
Sem dúvida, a comovente mensagem escrita pelo ex-presidente dos Estados Unidos,
Ronald Reagan, ao tomar conhecimento da moléstia que o atingira, foi o mais
eloquente anúncio do alastramento da doença. Desde então, a coleção de
histórias trágicas enternece e assusta a todos. O medo decorre também do
desconhecimento de causas, mas há evidências de transmissão pela carga
genética. E nesse sentido, timidamente, sinto-me candidato. Quatro tios, minha
mãe e meu irmão morreram com a doença. É bom que se diga que entre suas
fatalidades, talvez a mais estranha é que ela propriamente não mata. A causa da
morte sempre é outra, mais óbvia.
Os
sintomas são sutis, chegam devagar, e são facilmente confundidos com lapsos,
ausências fortuitas ou distração. Um esquecimento aqui, outro logo mais, a
repetição crescente e atordoante das mesmas coisas, a falta de registros de
fatos recentes, a perda da noção de espaço, tudo somado vai se amiudando na
aparência de loucura. E junto algumas manifestações que deixam estonteados os
familiares, amigos e circundantes: a violência explosiva, ou a passividade
absoluta, a intermitência de reconhecimento. De todas diria que a síndromes de
penúria, o sentimento de que se está sendo roubado ou ficando pobre, me parece,
é a mais atormentadora. O olhar desconfiado, o apego a bens materiais, o zelo
desmascarado pelos próprios pertences nos dimensiona a profundidade da ilógica.
Frente a essa trama impõe-se outra determinação da doença: a necessidade de
reposicionamento de todos os que convivem com a pessoa atingida. Sim, para quem
não padece do mal em si, a vida continua normal, os acontecimentos cotidianos
transcorrem na mesma dialética. É assim que demoramos para aceitar o próximo
que vai se diferenciando, se alienando, se constituindo em um mundo que não nos
reconhece, e o que é pior: onde não mais cabemos.
A
tristeza da situação é amargada pelo não caminho de volta. À favor da
fatalidade em muitos casos pessoas tornam-se como crianças. Ainda que haja
muita pesquisa para tratamentos, os que estão dispostos ao público são meros
paliativos, e isso contribui para um dos fenômenos mais imediatos, a depressão
de familiares. Não sabemos como trabalhar com esta situação e na tradição em
geral, onde o culto ao corpo ostenta a bandeira da saúde juvenil, isso fica
mais ultrajante. E nem há muitas casas especializadas no cuidados, fato que
transforma alguns logradouros em verdadeiros depósitos humanos.
Não
se pretende com esta reflexão multiplicar os tétricos corredores do labirinto
desse mal. O que se propõe é que comentemos sobre o assunto e exercitemos nossa
fala no esforço de entendimentos que superem a surpresa e a piedade. Até pouco
tempo, o autismo era pouco admitido, mas campanhas ampliaram o espaço de seu
entendimento. O Alzheimer agora nos desafia além do medo. Vamos falar sobre o
assunto. Vamos?