VELHOS
AMIGOS VELHOS
José
Carlos Sebe Bom Meihy
Acostumados
a ver tudo pelo momento presente, por vezes esquecemo-nos da fatalidade implacável
do tempo e, assim, deixamos escorrer da memória lembranças explicativas do que
nos tornamos. Pensando a vida familiar, por exemplo, visitando o passado,
indago do significado dos antigos encontros festivos. Aliás, mesmo frente ao
dia a dia, sintonizo mudanças e me encanto com pormenores que espantam o perverso
esquecimento. Como eram nossas refeições diárias, as dificuldades da cozinha
sem a panela de pressão, sem o fogão a gás, os quitutes preparados com muito
menor número de temperos e variantes!... Mesmo a água ou o leite não
industrializados, a inexistência de refrigerantes, as sobremesas do tempo da
vovó, tudo vai ficando reduzido a sensações. Só. Nossa, como as coisas mudaram...
Aprender lidar com dinheiro era muito mais complicado, pois não se falava em
mesada e tudo era contadinho, com prestação de contas: tanto para o ingresso do
cinema, tanto para bala, pipoca, e o troco dado para mamãe ou papai... Os
Natais eram celebrados sim, mas com medidos gastos, tudo bem mais simples. Os
aniversários tinham bolos e docinhos, mas feitos em casa e com receitas
copiadas à mão, em cadernos domésticos. Eu tinha roupa de domingo e lembro-me
bem do cuidado que deveria ter com os sapatos e meias novos. Falando dessas
coisas, parece que os séculos se sucederam em infinitos mais perdidos do que
supomos, contudo não foi bem assim.
Pois
é, a geração que hoje passa dos sessenta anos tem apagados os sentidos das
alterações. O consumismo foi se instalando tão sutilmente que nem notamos que,
aos poucos, às vezes sem querer, deixamos de ter pouca coisa e multiplicamos produtos
trocados velozmente e que perdem valor de estima. Nessa onda, os descartáveis
viraram mania e nos viciamos em novidades que carecem de apreço. Falar dessas
coisas soa saudosista e até melancólico, mas é importante avaliar como em uma
geração deixamos de ser modestamente cuidadosos para nos tornar modernos e
pródigos. Quem não se surpreendeu perguntando como vivia sem televisão,
internet, telefone sem fio ou celular? Ser do tempo da “máquina de retrato”,
dos “cursos de datilografia”, do “footing
na praça”, virou coisa de “novela de tempo”. Causa espécie a facilidade com que
nos atualizamos e então, ver essas coisas como curiosidades se transformou
quase em poesia diletante. Por favor, não pensem que estou no time dos que
evocam o passado como um programa de vida. Busco me atualizar, mas historiador,
me resta convocar o sentido das mudanças para propor entendimento dos
processos. Em países como o Brasil, as alterações são muito bruscas e até sinistras.
Sabe
por que estou retomando tudo isso? Aconteceu em minha vida pessoal algo
inusitado. Há duas semanas, depois de 19 anos, resolvi voltar a um lugar que
fez parte da história de minha geração. Interiorano, integrante de uma classe
média que se fez no processo de industrialização apressada no Vale do Paraíba,
o litoral era perfeita alternativa de férias, um paraíso que, além das belezas,
promovia aventuras ousadas, dessas experimentadas pela juventude que crescia na
evolução econômica do país. Coincidentemente, minha família, por força do
comércio, funcionou um pouco como pequeno agente dessas alterações. Investindo
no ramo hoteleiro, desde logo o papel familiar se repartiu entre promotores e
usufrutuários de tudo. E me afeiçoei às praias, às mudanças de sintonia entre a
pacatez da cidade original e os avessos permitidos nas férias. Como consequência
dos negócios, meu pai acabou por propor a construção de um edifício de
apartamentos onde mantivemos algumas unidades. Casado eu, minha mulher e filhos
aproveitamos muito do nosso quinhão, até que uma reforma completa se fez
projeto de minha mulher que morreu em seguida. Viúvo, retornei uma vez ao
local, e me propus a não mais repetir a experiência. Doeu muito. Demais. Tanto
que optei por evitar voltas. E por longos anos cumpri minha promessa pessoal.
Passado tempo considerável, porém, resolvi enfrentar o problema. Intuitivamente
medroso, convoquei um amigo querido e saudoso para um encontro lá. Amável, o
colega convidou dois outros e, não mais que de repente estávamos os quadros em
torno de uma mesa. É preciso dizer que a cidade praiana se tornou refúgio de
alguns aposentados e cheia de restaurantes modernizou-se aprazível, também como
lócus de pós-aposentados, como os colegas.
O
inédito da situação provocou revisões de cada qual. O primeiro tema foi saúde.
Diria que demoramos muito tempo conferindo debilidades. Todos tínhamos uma historinha
para contar. Um falou da próstata, outro de deficiência imunológica, outro de
coluna, e eu do coração. Celebramos, contudo, os anos passados e retraçamos
trajetos: filhos, dilemas familiares, perspectivas para a velhice que nos resta.
É preciso dizer que os componentes do pequeno grupo têm severas diferenças
ideológicas. Vivemos, contudo, o pressuposto científico que garante que os
opostos se atraem. Diria mais até: se completam, e são até mesmo capazes de
gerar luz. Foi assim que nos entreolhamos, nos abraçamos na hora da foto e
permanecemos emocionadamente unidos pelos séculos e pelas diferenças. Amém...
VELHOS AMIGOS VELHOS
José Carlos Sebe Bom Meihy
Acostumados a ver tudo pelo momento presente, por vezes esquecemo-nos da fatalidade implacável do tempo e, assim, deixamos escorrer da memória lembranças explicativas do que nos tornamos. Pensando a vida familiar, por exemplo, visitando o passado, indago do significado dos antigos encontros festivos. Aliás, mesmo frente ao dia a dia, sintonizo mudanças e me encanto com pormenores que espantam o perverso esquecimento. Como eram nossas refeições diárias, as dificuldades da cozinha sem a panela de pressão, sem o fogão a gás, os quitutes preparados com muito menor número de temperos e variantes!... Mesmo a água ou o leite não industrializados, a inexistência de refrigerantes, as sobremesas do tempo da vovó, tudo vai ficando reduzido a sensações. Só. Nossa, como as coisas mudaram... Aprender lidar com dinheiro era muito mais complicado, pois não se falava em mesada e tudo era contadinho, com prestação de contas: tanto para o ingresso do cinema, tanto para bala, pipoca, e o troco dado para mamãe ou papai... Os Natais eram celebrados sim, mas com medidos gastos, tudo bem mais simples. Os aniversários tinham bolos e docinhos, mas feitos em casa e com receitas copiadas à mão, em cadernos domésticos. Eu tinha roupa de domingo e lembro-me bem do cuidado que deveria ter com os sapatos e meias novos. Falando dessas coisas, parece que os séculos se sucederam em infinitos mais perdidos do que supomos, contudo não foi bem assim.
Pois é, a geração que hoje passa dos sessenta anos tem apagados os sentidos das alterações. O consumismo foi se instalando tão sutilmente que nem notamos que, aos poucos, às vezes sem querer, deixamos de ter pouca coisa e multiplicamos produtos trocados velozmente e que perdem valor de estima. Nessa onda, os descartáveis viraram mania e nos viciamos em novidades que carecem de apreço. Falar dessas coisas soa saudosista e até melancólico, mas é importante avaliar como em uma geração deixamos de ser modestamente cuidadosos para nos tornar modernos e pródigos. Quem não se surpreendeu perguntando como vivia sem televisão, internet, telefone sem fio ou celular? Ser do tempo da “máquina de retrato”, dos “cursos de datilografia”, do “footing na praça”, virou coisa de “novela de tempo”. Causa espécie a facilidade com que nos atualizamos e então, ver essas coisas como curiosidades se transformou quase em poesia diletante. Por favor, não pensem que estou no time dos que evocam o passado como um programa de vida. Busco me atualizar, mas historiador, me resta convocar o sentido das mudanças para propor entendimento dos processos. Em países como o Brasil, as alterações são muito bruscas e até sinistras.
Sabe por que estou retomando tudo isso? Aconteceu em minha vida pessoal algo inusitado. Há duas semanas, depois de 19 anos, resolvi voltar a um lugar que fez parte da história de minha geração. Interiorano, integrante de uma classe média que se fez no processo de industrialização apressada no Vale do Paraíba, o litoral era perfeita alternativa de férias, um paraíso que, além das belezas, promovia aventuras ousadas, dessas experimentadas pela juventude que crescia na evolução econômica do país. Coincidentemente, minha família, por força do comércio, funcionou um pouco como pequeno agente dessas alterações. Investindo no ramo hoteleiro, desde logo o papel familiar se repartiu entre promotores e usufrutuários de tudo. E me afeiçoei às praias, às mudanças de sintonia entre a pacatez da cidade original e os avessos permitidos nas férias. Como consequência dos negócios, meu pai acabou por propor a construção de um edifício de apartamentos onde mantivemos algumas unidades. Casado eu, minha mulher e filhos aproveitamos muito do nosso quinhão, até que uma reforma completa se fez projeto de minha mulher que morreu em seguida. Viúvo, retornei uma vez ao local, e me propus a não mais repetir a experiência. Doeu muito. Demais. Tanto que optei por evitar voltas. E por longos anos cumpri minha promessa pessoal. Passado tempo considerável, porém, resolvi enfrentar o problema. Intuitivamente medroso, convoquei um amigo querido e saudoso para um encontro lá. Amável, o colega convidou dois outros e, não mais que de repente estávamos os quadros em torno de uma mesa. É preciso dizer que a cidade praiana se tornou refúgio de alguns aposentados e cheia de restaurantes modernizou-se aprazível, também como lócus de pós-aposentados, como os colegas.
O inédito da situação provocou revisões de cada qual. O primeiro tema foi saúde. Diria que demoramos muito tempo conferindo debilidades. Todos tínhamos uma historinha para contar. Um falou da próstata, outro de deficiência imunológica, outro de coluna, e eu do coração. Celebramos, contudo, os anos passados e retraçamos trajetos: filhos, dilemas familiares, perspectivas para a velhice que nos resta. É preciso dizer que os componentes do pequeno grupo têm severas diferenças ideológicas. Vivemos, contudo, o pressuposto científico que garante que os opostos se atraem. Diria mais até: se completam, e são até mesmo capazes de gerar luz. Foi assim que nos entreolhamos, nos abraçamos na hora da foto e permanecemos emocionadamente unidos pelos séculos e pelas diferenças. Amém...
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