quarta-feira, 30 de maio de 2018

CONTANDO A VIDA 233


VAMOS FALAR DE ALZHEIMER...

José Carlos Sebe Bom Meihy

Somos mortais, é muito bom não esquecer. Mas, quando justamente o esquecimento torna-se matéria relativa a o drama final da existência, tudo se emaranha, e, de maneira instintiva, em atropelos defensivos, sentimos o peso da mão que apaga a fantasia da eternidade. E ficamos quietos, atônitos, perdidos. O silêncio, nesses casos, é cruel e tudo fica ainda mais sinistro quando constatamos que a cultura consagra a lembrança como meta. É assim que, como patologia pessoal e social, a erosão da memória de um ser humano se transforma em espetáculo impiedoso, e coloca o conjunto familiar em cenas dantescas, horripilantes mesmo. E desconhecidas.

Calcula-se que atualmente existam em nosso planeta cerca de 800 mil pessoas acometidas do chamado Mal de Alzheimer. Avalia-se que em 2050 serão 135 mil. Tudo se complica na medida em que a longevidade ganha terreno - vivemos muito mais do que nossos antepassados -, e os avanços da medicina multiplicam sucessos afeitos a sobrevivência. No rastro dessa trajetória, o Alzheimer alça protagonismo, pois acometendo pessoas com mais idade impõem diferenças de outros males comuns a senilidade. Antes falava-se de demência em geral, hoje sabe-se de especificidades. Diagnosticada pela primeira vez em 1906, pelo psiquiatra alemão Alois Alzheimer – que a descreveu como “uma doença peculiar” – demorou-se muito para que a comunidade médica a distinguisse do simples desgaste ou degenerescência. Aos poucos, insidiosamente, como visita impregnante, sua presença indesejável vem se fazendo notar, a cada dia mais próxima de nós. E demorou para ser entendida. Entre os fatores que atrapalharam as indicações do Dr Alzheimer situava o prestígio das teorias de Freud que àquela altura encantavam plateias com detalhamento do inconsciente, id, ego, superego, complexo de Édipo. Alzheimer, por sua vez, partia de uma corrente menos sedutora, e defendia que toda variação do que se conhecia como demência ou senilidade crônica tinha como raiz um fundamento biológico.

E foram precisos nomes ilustres para que a sombra dessa amedrontadora “nova doença” se anunciasse mundo afora: Rita Hayworth, Charlton Heston, Margareth Thatcher. Sem dúvida, a comovente mensagem escrita pelo ex-presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, ao tomar conhecimento da moléstia que o atingira, foi o mais eloquente anúncio do alastramento da doença. Desde então, a coleção de histórias trágicas enternece e assusta a todos. O medo decorre também do desconhecimento de causas, mas há evidências de transmissão pela carga genética. E nesse sentido, timidamente, sinto-me candidato. Quatro tios, minha mãe e meu irmão morreram com a doença. É bom que se diga que entre suas fatalidades, talvez a mais estranha é que ela propriamente não mata. A causa da morte sempre é outra, mais óbvia.

Os sintomas são sutis, chegam devagar, e são facilmente confundidos com lapsos, ausências fortuitas ou distração. Um esquecimento aqui, outro logo mais, a repetição crescente e atordoante das mesmas coisas, a falta de registros de fatos recentes, a perda da noção de espaço, tudo somado vai se amiudando na aparência de loucura. E junto algumas manifestações que deixam estonteados os familiares, amigos e circundantes: a violência explosiva, ou a passividade absoluta, a intermitência de reconhecimento. De todas diria que a síndromes de penúria, o sentimento de que se está sendo roubado ou ficando pobre, me parece, é a mais atormentadora. O olhar desconfiado, o apego a bens materiais, o zelo desmascarado pelos próprios pertences nos dimensiona a profundidade da ilógica. Frente a essa trama impõe-se outra determinação da doença: a necessidade de reposicionamento de todos os que convivem com a pessoa atingida. Sim, para quem não padece do mal em si, a vida continua normal, os acontecimentos cotidianos transcorrem na mesma dialética. É assim que demoramos para aceitar o próximo que vai se diferenciando, se alienando, se constituindo em um mundo que não nos reconhece, e o que é pior: onde não mais cabemos.

A tristeza da situação é amargada pelo não caminho de volta. À favor da fatalidade em muitos casos pessoas tornam-se como crianças. Ainda que haja muita pesquisa para tratamentos, os que estão dispostos ao público são meros paliativos, e isso contribui para um dos fenômenos mais imediatos, a depressão de familiares. Não sabemos como trabalhar com esta situação e na tradição em geral, onde o culto ao corpo ostenta a bandeira da saúde juvenil, isso fica mais ultrajante. E nem há muitas casas especializadas no cuidados, fato que transforma alguns logradouros em verdadeiros depósitos humanos.

Não se pretende com esta reflexão multiplicar os tétricos corredores do labirinto desse mal. O que se propõe é que comentemos sobre o assunto e exercitemos nossa fala no esforço de entendimentos que superem a surpresa e a piedade. Até pouco tempo, o autismo era pouco admitido, mas campanhas ampliaram o espaço de seu entendimento. O Alzheimer agora nos desafia além do medo. Vamos falar sobre o assunto. Vamos?

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