terça-feira, 3 de julho de 2018

SOCIÓLOGO ALBINO ANGOLANO

CELSO MALAVOLONEKE: ‘A DISCUSSÃO DO ALBINISMO NO NOSSO PAÍS TEM SIDO EVITADA’


Jornalista, professor universitário, mestrando em Sociologia da Comunicação. Foi o primeiro estudante que se licenciou em comunicação social numa universidade em Angola e é o único albino com funções mais altas no Executivo, quando se sabe que noutros países africanos pessoas com problemas de albinismo nem sequer podem sonhar em almejar tal lugar.

Num mês em que se comemora o Dia Mundial de Consciencialização zação do Albinismo, a 13 de Junho, o secretário de Estado da Comunicação Social, Celso Malavoloneke, 50 anos, abriu a porta do seu escritório para contar a sua história de vida e da “comunidade” em que está inserido

Entrevista de Dani Costa
Foto de Carlos Moco

O nome ‘Marthy’ ainda lhe toca muito?

Oh, toca-me muito. Marthy Itula é o nome que eu usava quando era estudante no Tchivinguiro. Mas, antes disso, deixe que lhe diga: ‘estou a desconfiar que fizeste uma pesquisa sobre mim’. Eu escrevia poesia e música. Ainda hoje escrevo músicas, porque sou letrista e compositor, mormente de música clássica, sobretudo gregoriana, porque a minha formação musical foi feita na Igreja Católica.

Quando alguém me chama assim é porque fazia parte de um grupo muito restrito do núcleo da Brigada Jovem de Literatura no Tchivinguiro. Depois, eu tenho sete filhos. Os três primeiros são meninas. Quando tive o quarto e primeiro rapaz decidi dar-lhe o nome de Marthy Itula.

Marthy Itula é também uma homenagem que faz à vossa mãe?

Tem um sabor muito especial e emocional. A minha mãe chamava- se Marta Chitula. Eu sempre tive uma veneração e uma admiração muito grande por ela. Na altura, no Tchivinguiro, ela estava viva. Vejo que foi uma grande homenagem que prestei à minha mãe e sinto-me feliz por tê-la feito, porque ela já não está mais no mundo dos vivos. Homenagem esta que quis prolongar dando este nome ao meu primeiro filho varão, que hoje já é um homem e está a terminar agora a universidade na África do Sul.

Como é que a família recebeu o nascimento de um bebé albino, no caso o Celso Malavoloneke, numa zona fronteiriça entre a Huíla e o Namibe, como é o Bunjei?

A minha família é realmente do Bunjei, mas o meu pai era professor de posto naquela altura. Quando nasci, ele estava a prestar serviço no Kuvango. Então, eu nasci numa aldeia chamada Katala, ali mesmo na margem do rio Cubango.

Contaram-me os meus pais que o meu nascimento tem uma estória um bocado caricata que envolve o então governador do Distrito de Sá da Bandeira, Celso Vilanova, e o entrevista de Dani Costa fotos de Carlos Moco agora deputado Fernando Faustino Muteka, que é primo do meu falecido pai.

Na altura, o meu tio Fernando Faustino Muteka era furriel miliciano e com o então governador do distrito gostavam de ir ao Kuvango, à Katala, com o meu pai, para irem caçar. Vieram num Sábado santo e com o meu pai foram à caça. Entretanto, eu nasci.

O que se passou depois?

Quando eles voltaram, imediatamente, o então governador Celso Vilanova ofereceu-se para ser meu padrinho. Então, eu chamome Celso (porque sou afilhado dele) Domingos (por ter nascido no Domingo da páscoa) José Malavoloneke (que é o duplo apelido que todos nós usamos).

O que significa Malavoloneke?

Significa ‘Filho dos tempos’, mas literalmente ‘Filho dos Dias’, que é um dos nomes da linhagem dos reis do Planalto do Huambo, Bié. É a linhagem que fornece os conselheiros dos reis. Portanto, os Malãvoloneke (assim mesmo nasalado no a, como ainda se pronuncia no Huambo, Bié e no Norte da Huíla) são a linhagem daqueles que fazem a leitura dos sinais dos tempos para aconselhar o soberano reinante.

Mas como é que a família viu o seu nascimento?

Voltando à minha mãe, eu nasci já num certo limbo cultural. O meu pai já era assimilado, passei a ser conhecido como o afilhado do governador, que vinha sempre me ver, trazia-me brinquedos e triciclos, enquanto esteve a cumprir a sua missão na então Sá da Bandeira. De forma que não fui praticamente atingido por algumas práticas culturais dos nganguelas, no seio dos quais nasci.

O que significava para os nganguelas o nascimento de um bebé albino?

Para eles, o nascimento de um bebé albino era um anátema, um sinal de azar. Embrulhavam-no na pele de um bode preto, recentemente morto. Vim saber agora que também, nalguns casos mais extremos, levavam (ou ainda levam) o bebé albino ao rio e o deixavam-no lá. Praticamente o afogavam, como uma oferenda aos espíritos antepassados. Não tive isso, porque a minha mãe naquela altura já tinha a quarta classe, tinha estudado na escola Means, da Missão do Dondi, onde o meu pai a foi buscar.

Então, cresci num ambiente realmente de muito carinho e muita protecção. A minha mãe levou isso de forma muito séria, mesmo depois, quando passamos a fi car no Bunjei e o meu pai saía para dar aulas noutros lugares. Esteve na Jamba, por exemplo. A minha mãe sempre inculcou- me estes valores que cultivo até hoje, como a necessidade de hidratar a pele, proteger-me do sol e de tomar um cuidado muito especial comigo.

Teve uma infância feliz?

Eu tive uma infância feliz, mas muito feliz mesmo. Uma infância privilegiada. Mesmo quando vivíamos nas mesmas condições que os outros no Bunjei, porque toda aquela turbulência do ano de 1976 passou-nos lá, para lhe dar uma ideia, a minha mãe e nossos irmãos estivemos sequestrados nas matas durante quase todo o ano de 1976. Ali sempre tive esta protecção e a minha mãe sempre inculcou- me uma capacidade de autoestima muito grande.

Disse há dois anos, numa das edições do programa Hora Quente, da TPA, que Angola ‘é um dos melhores países da África subsahariana para uma pessoa albina nascer e viver’. Teve em consideração a sua experiência ou dos demais cidadãos que sofrem de albinismo?

Das duas: como o Dani sabe, sou um profi ssional da Comunicação, mas também da Sociologia. Fiz o meu bacharelato em Planifi cação de Desenvolvimento Rural Internacional, depois uma licenciatura em Comunicação Social e estou quase a concluir o mestrado de Sociologia. Portanto, tive esta trajetória toda a trabalhar nas organizações não-governamentais e também nas Nações Unidas, sempre muito ligado às comunidades.

Isso permite-me ter uma ideia bastante aproximada da realidade cultural, da cosmovisão das comunidades, muitas vezes pouco conhecidas, vistas e, menos, ouvidas. Então, nestas duas condições eu digo que, quando comparo com outros países africanos, porque naturalmente que como oficial de comunicação da UNICEF viajei muito, trabalhei em quatro ou cinco países africanos, e deu para ver que os albinos em Angola têm muito mais oportunidades de crescer e desenvolver- se como pessoas.

Têm muito mais oportunidades do que em países como a Tanzânia, Moçambique, até a própria República Democrática do Congo. É muito frequente que quando viajo as pessoas perguntam e às vezes pensam que não sou africano, que sou, por exemplo, americano.

Mas isto é porque na maior parte dos países africanos, com excepção talvez da África do Sul, não é muito normal encontrar uma pessoa albina a viver muito naturalmente como vive uma outra, por causa dos tabus da própria cultura em si. Mas é verdade que aqui em Angola é um dos melhores países africanos para um albino nascer e crescer. Mas isso varia consoante as zonas.

Como assim?

Por exemplo, no Norte de Angola os albinos sofrem mais de práticas culturais discriminatórias.

Quais são as províncias do Norte em que esta discriminação acentuada acontece?

Refiro-me fundamentalmente àquela parte do país habitada pela tribo bacongo, ao Uíge, ao Zaire, Cabinda, Norte de Malanje, um pouco o Oeste da Lunda-Norte. Talvez por infl uências que vêm do centro de África, as práticas discriminatórias são maiores. Quase aos 50 anos, porque não foi há muito tempo, a minha pior experiência como pessoa albina foi no Zaire há dois anos.

O que aconteceu no Zaire concretamente?

Basicamente, fui expulso do Palácio do governador, separado do resto da delegação e posto num hotel sozinho. Lembro-me de que isto criou um ambiente de mal-estar, e já era director nacional nesta altura. Mas isto é porque existe esta carga cultural negativa. Confesso que foi a experiência mais traumática que tive na minha vida. Considero-me feliz por ter esperado até aos 50 anos para vivê-la.

Até porque isso foi protagonizado por camaradas meus do MPLA e que têm responsabilidades de Estado bastante altas, porque, realmente, é algo que não se coaduna com a própria tradição do MPLA, que, como todos nós sabemos, é um partido muito acima de todos estes preconceitos homofóbicos.

Já no Centro não acontece isso. É onde as pessoas albinas são melhor acolhidas, porque, ao contrário do Norte e do Sul, onde a pessoa albina é considerada uma maldição, no Centro é uma bênção. Apesar de não termos estatísticas, dados empíricos indicam que a maior concentração de albinos é no Planalto.

É verdade que eventualmente agora, por causa das mudanças na geografi a humana, pode-se encontrar mais em Luanda. Mas nas comunidades rurais, a maior concentração de pessoas albinas é mesmo no Planalto. Ali as famílias têm como ponto de honra cuidar da sua sobrevivência e unirem-se para colmatar as suas necessidades especiais.

E o que acontece no Sul?

Já no Sul, há menos pessoas albinas porque o clima é bastante árido. É seco e quente. As populações praticam a pastorícia. Mesmo as casas em que as pessoas vivemsempre refiro-me à cultura padrão-, onde vivem os muílas, os kuvales, os himbas, muakahonas, mungambes e até mesmo os ovambos, são construções precárias.

Eles como praticam a pastorícia, a transumância, vivem atrás do gado, as casas deles são construídas a pensar para durar no máximo um ano. É feita de capim e pauapique, porque no ano seguinte mudam. Não oferecem grande protecção. Depois, as crianças desde cedo têm que ir pastar o gado. Obviamente, uma criança albina não resiste. Normalmente, naquelas comunidades uma c r i a n – ça albina difi cilmente atinge os cinco anos.

Tem falado do cancro da pele e dos problemas de visão que afligem as pessoas com albinismo. É uma pessoa com forte influência na comunidade. São as principais preocupações de que padecem os albinos em Angola?

Podemos considerar isso em duas vertentes. Uma: é um facto em relação à visão. Uma pessoa albina deve corrigir a visão o mais cedo possível.

Não foi o que aconteceu com o Celso. Sabemos que recebeu os primeiros óculos das mãos de um responsável da Igreja Católica na Huíla, provavelmente o cardeal Dom Alexandre do Nascimento?

Por acaso, não foi da mão do cardeal. Foi do seu sucessor, o falecido arcebispo Dom Manuel Franklin da Costa. O cardeal jogou um papel muito importante no fornecimento de pomadas, Vaselina e Nivea, que ele fazia questão de trazer sempre que voltasse do estrangeiro. Fez isso de 1977 a 1986.

Em que circunstância o cardeal Dom Alexandre do Nascimento o encontrou? Foi numa situação precária em que até sangrava num dos membros?

Não, não, não. Foi assim: eu vinha da escola e sempre fui muito extrovertido. Devo isso precisamente à educação que tive, à forma como me foi passada a auto-estima, a aceitação de mim mesmo e a capacidade de viver como sou…

Nasceu no seio de uma família tradicionalmente evangélica e agora é católico…

Vou chegar aí. Então, vinha da escola num grupo de colegas. Eram 16 ou 17 horas, porque estudava a segunda classe de tarde. Para quem conhece o Lubango, eu morava depois da ponte para quem vai para a Senhora do Monte, depois do Caminho- de-Ferro. Quando passava pela ponte, vi um homem alto, com uma batina, debruçado sobre a ponte, e tinha o terço. Naquela altura nem percebia o que era. Para mim, era uma missanga.

Perguntamo-nos: é padre? Eu era evangélico e nunca tinha convivido com um padre. Então fui ter com ele, porque era muito curioso. Acho que ainda sou! Perguntei-lhe: ‘quem é você? Ele olhou-me e disse: ‘eu sou o tio Alexandre’. Porquê estás vestido assim? ‘Porque sou padre’, respondeu- me. Perguntei-lhe: o que é isso de padre? Quanto mais perguntava, ele respondia. Hoje diríamos perguntas de ‘follow up’.

Na altura, ele era arcebispo do Lubango. Talvez para se desfazer de mim ou não, porque não quero ser injusto, disse: porque não vens me visitar à minha casa. ‘Estás a ver aquela casa lá ao fundo. Eu moro ai. Vem amanha e diz que vens ter com o tio Alexandre’, disse-me indicando o arcebispado. Eu fui e começou a nossa amizade assim.

Continuava a perguntar e ele respondia. Depois descobriu que eu gostava de ler, saber coisas novas, começou a dar-me livros, aulas de história da igreja, história universal, filosofia. Até retórica. Eu digo hoje que sou o homem que sou graças a ele e às nossas conversas que iam das 17 horas e 30 minutos às 18 e 30.

Muito tempo de convívio?

Algumas vezes ele gostava de sair para passear e íamos juntos. Ele convidava-me a ir. Ele gostava de escrever poesia.

Sabias que o cardeal é poeta?

Vi muitas vezes ele a fazer poesia.

Até que ponto consciencializou-o em relação à questão do albinismo?

Sabe que nunca tinha pensado nisso? Mas agora que você pergunta, o cardeal nunca falou nisso. Ele falava disso da forma mais natural possível. Quando me visse com uma ferida perguntava: o que se passou? Já andaste sem chapéu? Então me dizia: tens que hidratar sempre a tua pele, pôr pomada. Ele ia ao quarto e trazia um frasco para mim. Eu comecei a usar Nivea com ele, mas naquela altura era um luxo muito grande. A primeira vez deu-me, perguntou se tinha gostado e começou a trazer sempre. Imagine: nos anos 77, 78 e 79, usar Nívea era um luxo. A minha mãe recebia aquilo, guardava e não permitia que alguém tocasse. Sabia que aquilo eram pomadas que ela não tinha qualquer hipótese de obter.

A pergunta sobre o cardeal e as pomadas foi mesmo propositada. Foi isso que contribuiu para que não tenha problemas de pele à semelhança de outros albinos?

Definitivamente. Eu tenho menos problemas de pele, por exemplo, agora aos 50 anos, exactamente porque tive esta educação muito rígida da minha mãe, do meu pai e depois retomada pelo cardeal. Para mim, usar chapéu, roupas de mangas compridas, hidratar a pele de manhã para mim já é uma rotina.

É como tomar banho. Faz parte dos meus cuidados. Tanto mais que, nem vais acreditar, eu não uso protectores solares. Evitoos. Primeiro, porque naquela altura não existiam, então apostei na protecção e na hidratação da pele. Voltando ao cardeal, a última vez em que ouvi – embora ele não me tealcado, mas senti – porque ele é uma pessoa muito introvertida, tem dificuldades em expressar emoções fortes. Isso posso dizer. Quando ele tem uma emoção muito forte, fecha-se e quanto muito vai à capela rezar. É uma coisa que aprendi e vi várias vezes. Tanto de alegria como de tristeza.

A única vez que lhe vi chocado e magoado por causa da minha condição de albinismo foi quando, obviamente pelo exemplo dele, pensei em ser padre. Acho que esta é a primeira vez em que digo isso em público.

Naquela altura, no Lubango não havia seminário. Havia um senhor chamado Tchimane que acolhia na sua casa os jovens que quisessem ser padres. Jovens como o actual bispo do Namibe, D. Dionísio, o padre Pio, que, por sinal, até é meu primo, e vários outros daquela geração.

Só que antes de ir para aí era preciso falar com os párocos e darem a sua opinião. Então, naquela altura, alguns padres entendiam que uma pessoa albina seria um escândalo se fosse um padre. Deram voltas e mais voltas. Até que o cardeal descobriu que era por isso.

Ele ficou muito chocado e muito magoado. Lembro-me que numa das poucas vezes em que falou comigo sobre isso, vi-o com dificuldades em segurar a emoção. Foi aí que aprendi uma coisa que o bispo tem. Parecem ter muito poder, até muita gente diz que na Igreja Católica não existe democracia, ele por mais que não concorde não decide sozinho.

Falou dos cremes e dos óculos, mas há algo que ainda não contou. É verdade que o hábito do chapéu foi-lhe incutido pelo vosso pai. Como é que isso aconteceu?

Levando muita surra. O meu padrinho trazia-me chapéus. Desde que me conheço como gente, quando saísse à rua, tinha que pôr chapéu. Se não pusesse, regressava à casa para pôr o chapéu. Depois o meu pai mudou de táctica. Começou a castigar os meus irmãos, ou seja, se eles me deixassem sair sem que eu tivesse um chapéu, então apanhavam eles. Eram eles também que começaram a insistir para que eu usasse o chapéu.

Portanto, fui crescendo assim. Há uma história muito engraçada de uma madre que foi provincial das Irmãs de São José de Cluny, a irmã Rosa Tchimuma, que eventualmente é doutorada num destes ramos religiosos e agora é conselheira em França, nasceu na mesma aldeia que eu.

Ela até hoje diz que por causa de ti levei muita surra do professor Constantino, o meu pai. Ele incutia que todas as pessoas que estivessem comigo tinham que proteger- me do sol.

‘Pelo que sei, sou o único estudante albino na história do Tchivinguiro’

Quando pensou em ir ao Tchivingiro estudar, a preocupação dos pais aumentou também porque estaria muito exposto ao sol?

Sim, mas essa é uma outra estória. Sempre fui muito independente e habituei-me a pensar pela própria cabeça. Na oitava classe, sobretudo, quando não concordasse com alguma coisa dizia. Estamos a falar de 1984. o delegado provincial da altura, que ainda está lá e hoje é o nosso kota Melquíades Isabel de Kerlan, acho que um pouco para castigar-me ou não, eu queria ir para o PUNIv fazer Ciências Sociais e depois, eventualmente, fazer Direito. Naquela altura, o Dr. Kerlan entendeu que não deveria ir para ali, não tinha confi ança para aquele curso e decidiu mandar-me, nada mais nada menos que para o Tchivinguiro.

Havia outras pessoas albinas no Tchivinguiro?

Não. Nem antes nem depois. Pelo que eu saiba sou o único estudante albino na história do Tchivinguiro. quando fui, o meu pai ficou realmente preocupado, porque sabia que no Tchivinguiro era para trabalhar no campo. Tentou falar com o Dr. Kerlan, mas este apenas lhe ofereceu a possibilidade de eu ficar o ano sem estudar para no seguinte ver o que poderia fazer. Nem eu, nem o meu pai, os meus irmãos parece que já estavam todos fora (um em Portugal, outro na rússia e no Brasil), então decidi avançar.

E como é que foi a passagem pelo Tchivinguiro?

Eu tive a oportunidade de encontrar um senhor que até hoje é uma das grandes referências da minha vida, o Manuel Serôdio de Almeida, que na altura era o director. Uma vez fomos ao campo, ele ia a passar de carro, nós estavámos na sacha, parou e mandou-me chamar. o que estás a fazer aqui? Perguntou- me.

E respondi: vim estudar. Ele disse: quem foi o louco que te mandou aqui? Pediu-me que fosse ao gabinete dele e fez-me uma entrevista. Perguntou-me como tinha ido lá parar e contei-lhe. Ele era ‘mau’, aquilo que chamamos hoje de rigoroso, porque tinha que atender cerca de 600 estudantes naquele ambiente de penúria, com falta de alimentos. Apesar de gostarmos dele, tínhamos medo e raiva. A partir dali falamos bastante.

Disse-lhe entrevisque estava disposto a levar aquilo até ao fim. Então, ele pôsme a trabalhar no escritório. Colocou-me no departamento do Plano. o meu trabalho era fazer o plano de lavoura, a planificação das sementes. Fiquei com muita raiva porque depois os colegas fi cavam no gozo: ‘você Malavo está bom aí e nós é que ficamos aí a apanhar sol’. Depois encontrei-me com professores italianos e especializeime em sociologia e extensão rural. Acabou por ser uma experiência muito bela, fiz irmãos para toda a vida. Algumas pessoas mais próximas de mim, além dos irmãos de sangue, partem do Tchivinguiro.

Éramos de várias culturas. Aprendemos a respeitar e a apreciar várias culturas de todos os cantos do país. Acho que eu terei contribuído para fazer-lhes compreender e derrubar alguns tabus que eles eventualmente tinham sobre os albinos. Uma das pessoas que ainda hoje é meu vizinho e um irmão, o José Luís Fernandes, até agora conta nas mulheres e nos fi lhos que a primeira vez que dormimos juntos no mesmo quarto, ele acordou-me a meio da noite porque havia o tabu de que, quando se está a dormir com um albino, se fores ao quarto de banho tens que acordá-lo. Fiquei furioso. Mas claro que no dia seguinte virou gozo.

Ao nosso jeito, é assim que derrubamos estes tabus todos. Eu fui para o Tchivinguiro com 16 anos, estava a sair da adolescência. Portanto, todas as minhas experiências amorosas e sexuais foram no Tchivinguiro. Tudo isto foi uma experiência que me leva a considerar todos da minha geração do Tchivinguiro como verdadeiros irmãos, porque eles continuaram, de certa maneira, este processo da construção da minha personalidade, aceitando- me a mim próprio, sem preconceitos, sem autopiedade, mas também sem arrogâncias nem vitimizações.

Nunca teve dificuldades em arranjar amores por ser albino?

Sabemos que está numa segunda relação e tem os seus sete filhos. (risos). Não sabia que era público que ia numa segunda relação! Não, nunca tive dificuldade. E isso devo aos meus irmãos e irmãs do Tchivinguiro. realmente, fizeram-me sentir uma pessoa como outra normal. Eu era poeta, cantor e director do coro. Só o coro tinha por aí 40, 50 ou 60 raparigas. Tive os meus amores e as minhas desilusões da juventude. Como disse, a minha constituição de personalidade enquanto homem sexuado foi aí no Tchivinguiro. Nunca, mas nunca mesmo, senti-me rejeitado ou tratado de maneira diferente.

Isto as minhas irmãs do Tchivinguiro me conseguiram. o mais engraçado é que tive uma relação no Tchivinguiro que por acordo mútuo terminou, porque eu tinha que ficar no Lubango e ela tinha que vir para aqui. Cada um de nós tinha que cuidar da mãe.

Depois tive a minha primeira relação, casei-me, mas não com alguém do Tchivinguiro, mas que conheci nas minhas lides na Igreja Católica. Infelizmente, não funcionou, separamo-nos. Mas a minha relação actual é de alguém do Tchivinguiro. Não tanto minha contemporânea. Ela chegou quando eu estava no penúltimo ano.

‘O Presidente João Lourenço também quis passar uma mensagem quando me escolheu’

Primeiro estudante numa universidade em Angola a licenciar-se em comunicação social, em 2007. E também o primeiro albino a chegar ao Governo como secretário de Estado. Como é que a comunidade albina recebeu esta informação?

Esta agora! Eu não tenho uma ligação muito estreita com a comunidade albina.

Mas é normal vê-lo, quase sempre, com aqueles que identifica como seus irmãos de sangue, entre os quais Domingos das Neves e Guilherme Santos, presidente da ADRA.

É melhor começar por estes. Tanto o Guilherme como o Domingos, naturalmente, sinto neles que ficaram felizes. É óbvio, porque somos mesmo irmãos. Mas o que sinto neles é agora esta preocupação de ajudar-me a fazer um bom trabalho e a prestar um bom testemunho pessoal, profissional, político e governativo. Acabam efectivamente por ver em mim uma realização de que ‘nós podemos’. É verdade que já o (Manuel) Savihemba é deputado pela UNITA desde 1992. Agora está lá também no Parlamento o Bartolomeu.

Tem boas relações com o deputado Savihemba, uma vez que são de partidos diferentes. Ele da UNITA e o Celso do MPLA?

Somos manos. Isso não tem rigorosamente nada a ver. Eu também não tenho problemas com o pessoal da UNITA, porque enquanto profissional humanitário trabalhei muito com eles. Então, nós temos uma relação de amores e desamores. Agora com o Savihemba é uma relação muito próxima. Ele é uma pessoa muito doce, que prima pelo consenso, tem uma capacidade de amar as pessoas extraordinária.

É talvez uma das melhores pessoas que conheço com esta capacidade de congregação e de perdão extremamente grande. Eu o admiro muito. o Guilherme é uma pessoa que, do meu ponto de vista, Deus deu-lhe esta capacidade de trabalhar em prol dos mais desfavorecidos. A maneira como consegue conduzir processos de desenvolvimento nas comunidades. É por isso que ele passou a ser a pessoa que está mais em contacto, tanto como as 4 A’s (Associação de Apoio de Albinos de Angola), como a um movimento que criamos porque pensávamos que as 4A’s não engajavam todos.

É aquilo que chamamos de Movimento Pró-Albinos, que é uma coisa mais solta, menos formal, onde a gente procura acolher todos. Infelizmente, por causa das minhas ocupações, dificilmente consigo ir aos encontros.

Mas estou consciente de que a comunidade albina do país olha para mim como alguém deles que conseguiu chegar num lugar onde muito boa gente pensa que uma pessoa albina não é suposto ali estar.

Podem estar a olhar também como alguém que poderá fazer um lobby no sentido de se atenderem àlgumas questões apresentadas ao Executivo pela Associação de Apoio dos Albinos de Angola?

obviamente. Acedi a esta entrevista, que vem atrasada… faz parte disso. Acredito que quando o Presidente da república, João Lourenço, me escolheu para ser secretário de Estado, quis também passar esta mensagem. Uma mensagem de que o Governo de Angola e o MPLA, enquanto partido, são inclusivos, onde as pessoas com albinismo são como quaisquer outras, desde que tenham as competências e preencham os requisitos. Ainda assim, acontecem algumas coisas caricatas.

Quais foram as coisas caricatas que aconteceram?

Lembro-me que quando algumas vezes fui chamado para representar o ministro, naquela altura em que os membros do Governo eram chamados para apresentar cumprimentos de despedida ou de boas- vindas ao Presidente da república, como disse, uso sempre chapéu. E sou muito cuidadoso em termos de etiqueta e uso do chapéu. Então a regra é simples: sempre que se está dentro de um espaço coberto deve-se tirar o chapéu. E dentro de um espaço livre deve-se pôr o chapéu.

É a regra. obviamente, quando íamos ao aeroporto, estávamos em fila, eu punha o chapéu, até porque faz sol. Porque a minha pele da cara não está habituada a receber directamente os raios do sol, porque se ficar 10 miminutos debaixo do sol já ficam bolhas, que depois têm que ser hidratadas porque senão criam feridas.

Então eu uso chapéu. o próprio Presidente, que me conhece há muitos anos, olhava-me, cumprimentava e achava natural. Mas um amigo, por sinal deputado e artista, intelectual e escritor, entendeu que deveria mandar uma mensagem.

Acho até que falou com o ministro: o Celso não pôde, como é que à frente do Presidente fica com chapéu? Tive conhecimento que gerou um debate num grupo no Watsap, do MPLA. E eu, tinha acabado de ser nomeado, fui falar com o ministro: ‘estão a dizer isso, o que faço?

o ministro interrogou-se: e eu é que sei? Então vamos perguntar ao cerimonial. Apresentamos o problema ao Luís Fernando. olhou para nós e riu-se tanto. Já que insistes, disse-me o Luís, vou perguntar ao José Filipe. Só sei que até hoje nunca responderam. Mas acontecem coisas muito engraçadas.

Houve mais cenas do género por causa do albinismo?

O engraçado é que aconteceu duas vezes no Ministério da Saúde. A primeira vez que fomos a uma reunião dos secretários de Estado, convocada pela ministra. Encontrei o lugar dos secretários de Estado, por causa da minha vista, e porque ia ver uma projecção, então senteime onde poderia ver no sítio dos secretários de Estado.

A moça chegou: ‘o senhor tem que sair dai, aqui é o lugar dos secretários de Estado, por que está sentado aqui’?. olhei para ela e disse-lhe: ‘oh jovem, sabe, o Executivo de Angola tem um secretário de Estado albino’.

Parecia-me que era nova. Trabalho com as outras há décadas. Aquilo criou uma celeuma e ela depois veio ter comigo com uns olhos vermelhos a chorar e a pedir desculpas. Disse-lhe para ficar calma. Isso é só para dizer que na cabeça de muitas pessoas não encaixa muito…

Quais são as principais preocupações dos albinos que devem ser resolvidas pelo Executivo?

A primeira é que precisam de ter acesso à consulta de oftalmologia e óculos gratuitos. Eu acho que o Estado deveria fornecer isso gratuitamente, tal como se faz com as cadeiras de roda às pessoas com deficiências motoras.

A limitação de visão pode ser um grande handicap para o desenvolvimento integral e total de uma criança. Impede- a ou limita-a de ter as mesmas oportunidades de crescimento que as outras crianças têm. o segundo aspecto tem a ver com os cuidados com a pele.

Eu não sou daqueles que vai muito com os protectores solares, talvez porque, como lhe disse, eu próprio não os uso.

Quando é que usa protector solar?

A não ser quando sei que vou ao campo. Mas no dia-a-dia não os uso. Mas tudo isso passa pela educação. Acho que precisamos de uma maior discussão sobre os métodos e meios de hidratação da pele de uma pessoa albina, de maneira a mantê-la saudável, de um lado. Por outro lado, para prevenir o cancro da pele, porque nós somos propensos. quando isso acontece, é importante que as pessoas albinas tenham acesso ao tratamento gratuito. Não há uma estatística, mas atrever-me-ia em dizer que acima de 80 por cento das mortes de pessoas albinas são por cancro da pele.

Se conseguirmos que na secção de oncologia do hospital Josina Machel tratem das pessoas albinas de uma forma especial, porque quase todas que vão aí já estão em fase terminal… É comum vermos pessoas albinas a andarem na rua com feridas. Começa como ferida pequena, mas se não for tratada vai alargando.

A pele acaba por ser calcinada pelos raios ultravioletas e desenvolve o cancro. Em terceiro lugar, acho que é importante abrir a discussão sobre a questão do albinismo no nosso país. Essa discussão é evitada. É como o lixo que é varrido para debaixo do tapete. Ninguém assume que existem preconceitos em relação às pessoas albinas. Mas existe. Eu, quando digo isso não é porque me quero vitimizar ou atacar alguém. Mas porque é um facto.

A relação normal de uma pessoa é sentirem-se ofendidas, algumas até muito ofendidas. Depois vêm dizer ‘eu também tenho um primo ou um familiar albino’. A questão é que nós precisamos de no nosso comportamento melhorarmos o comportamento que existe em alguns lugares mais e noutros menos em relação às pessoas com albinismo. Principalmente nas crianças. As crianças albinas sofrem muito bullyng.

Eu, de certa maneira fui protegido, porque, como disse, o meu pai era o director da escola onde estudava. Mas depois, lembro-me, tenho um irmão chamado Carlos que se envolveu em muitas brigas porque as pessoas faziam bullyng comigo e ele fi cava com as dores.
https://opais.co.ao/index.php/2018/06/29/celso-malavoloneke-a-discussao-do-albinismo-no-nosso-pais-tem-sido-evitada/

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