segunda-feira, 20 de agosto de 2018

CAIXA DE MÚSICA 328


Roberto Rillo Bíscaro

Semana passada, a soul music perdeu sua Rainha, Aretha Franklin. Felizmente, divas negras do gênero continuam aparecendo, como atestam dois ótimos álbuns canadenses. 

Tradição no fim/começo de anos é eu buscando listas de melhores álbuns de rock progressivo e R’n’B/soul. Especialmente de publicações mais especializadas – embora não descarte Rolling Stones ou The Guardian. Sites específicos ou hipster sempre trazem artistas que não conhecia e que não teriam espaço em listas mais mainstream.
Nem lembro em que lista vi o álbum Soul Run, de Tanika Charles, mas como cantoras sempre têm minha preferência, fui atrás no Bandcamp, na hora, enquanto lia as demais entradas do ranque. A faixa-título quase me derrubou da cadeira, de tanto que pulei de frenesi rebolante e embora não tenha visto o álbum em nenhuma outra listagem – hipster ou mainstream – sei de coração que foi um dos grandes de 2017.
A canadense vem trabalhando no circuito musical independente de Toronto, desde 2010 e em abril do ano passado estreou em álbum com Soul Run. Depois da dispensável Intro vem a faixa-título, dínamo com letra empoderada, que aliás, abundam por todo o álbum.
Quem diria que uma judia inglesa abriria público e influenciaria negras do “Novo Mundo”? De modo algum Tanika Charles imita Amy Winehouse, mas ambas navegam na mesma tradição do R’n’B/soul sessentista/setentista popificado, com letras mal-criadas se necessário, pra marcar território. Em More Than a Man esse parentesco aparece mais vividamente do que em qualquer outra faixa, seja em alguns maneirismos vocais, seja na letra que reclama do bofe que não sabe a hora de desgrudar (mas isso é dito com um palavrão, à Amy, que repousa na glória eterna, amém!).
Soul Run é conciso coquetel midtempo, que remeterá aos áureos tempos da Motown/Atlantic/Stax, mas sem soar antiquado, muito pelo contrário: perceba como algumas harmonias e progressões de Darkness & The Dawn são de hip hop, mas estão ressignificadas como vintage. Formalmente, a mais inteligente do álbum e ainda por cima com vocal inacreditável.
Quero ver fã roxo de soul conseguir deixar de estalar os dedos, quando começar a percussão de Love Fool. Heavy investe no B de rhythm’n’blues, enquanto Endless Chain é lufada de primavera, com coro que parece saído de Why Should I Love You, aquela subestimada colaboração entre Prince e Kate Bush, na geração passada.
Soul Run é um grande álbum, e não há desculpa de inacessibilidade, porque ei-lo, no Bandcamp:

Também do Canadá, mas de Montreal, vem o trabalho de Dominique Fils-Aimé, que, apesar do nome e da cidade ser a segunda maior do mundo a falar francês, canta em inglês.
Seu segundo álbum, Nameless - cujo título foi inspirado pelo poema Still I Rise, de Maya Angelou – saiu em fevereiro. Dada sua fonte inspiratória, não surpreende o caráter ativista de algumas letras e o mergulho em e influência de modos vocais e artistas negros da primeira metade do século 20.
Já que a opressão é uma preocupação do conciso álbum, Dominique o abre atrevidamente fazendo cover apenas vocal de Strange Fruit, clássico sobre os linchamentos de negros, no sul dos EUA. A canção já passou por bocas de Billie Holiday à Siouxsie Sioux e a canadense escolheu abordá-la como todo o resto de Nameless, de forma esparsa e minimalista. O resultado sumariza o álbum: impressionante.
Ao escolher que menos é mais, Fils-Aimé tinha que ter gogó e isso não lhe falta. Não se trata de trabalho jazzístico/Neo Soul de diva gritona, pelo contrário. O momento mais primal é durante a quase sexy Sleepy, mas nesse álbum significa que pode passar despercebido pro ouvinte menos atento.
Nameless de jeito nenhum dá sono ou é frouxo. Com vocal que de vez em quando lembra influência também de Sade, além das grandes mais antigas, Dominique intercala interpretações vindas discretamente da alma, com silêncios que assombram, como em Home. E como dissociar a experiência afro-diaspórica dos convenientes, sonoros e assassinos silêncios ao longo de séculos?
Mesmo quando opta por apenas murmurar, como na integridade de Unstated (olha esse título!), Dominique cria uma senhora faixa: além da metáfora do abafamento, em termos sonoros os instrumentos não deixam de se referenciar a certo tipo de hip hop mais agressivo, mas sem sê-lo; ouça pra crer.
É tudo muito delicado e discreto. Em Birds, basicamente há um obeso contrabaixo e sons percussivos recriando rufares de asas. Na faixa-título, o violino flutuará por seus ouvidos feito aparição.
Em época de tanta ostentação de terceira categoria e  rival imaginada barulhentamente combatida com tiro, porrada e bomba, Dominique Fils-Aimé se destaca, porque dá tapa na cara de inimigo bem real, mas com luva de pelica cravejada de pregos.

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