Na dramaturgia de Henrik Ibsen, amiúde uma personagem
retornava ao lar, onde a situação estava aparentemente sob controle, e sua volta
trazia à tona problemas do passado não-resolvidos e tudo acabava muito mal.
Também era frequente no teatro do norueguês que algum problema social fosse
responsável ou servisse de desculpa pra tragédia pessoal sequente.
As 2 temporadas de Frikjent (2015-16), produção da pátria
de Ibsen, têm muito desse antecessor ilustre e também flerta com elementos
trágicos, devidamente contemporanizados com um espectro de Nordic Noir e
migalhas melodramáticas, vestidas de drama familiar complexo, denso, com
personagens martirizadas pelo passado, obstinadas em seus objetivos e bastante
nuançadas, bem ao gosto da TV moderna de boa qualidade.
Lifjord é linda cidadezinha incrustrada num espetacular
fiorde no noroeste da rica Noruega. Encravada entre a água e a montanha, a vida
econômica do local depende da Solar Tech, gerida pelos Hansteen, ou melhor, por
Eva, a matriarca que domina a família e a aldeia.
O motorzinho do drama começa a funcionar aloprado, quando
a empresa entra em bancarrota e passa ao controle dos chineses. Incentivado
pelo marido de Eva, William Hansteen, originalmente o dono do dinheiro, quem
vem a Lifjord tratar da aquisição da Solar Tech é Aksel Borgen, nativo da vila,
mas, que há 20 anos não punha os pés ali.
Aksel se exilara voluntariamente da Noruega, porque nos
90’s fora condenado, mas depois absolvido (título em inglês para o mercado
internacional, Acquitted) pelo assassinato da adolescente Karine. Mesmo
absolto, a cidade jamais acreditou na inocência de Aksel, que é dado a crises
de violência cega e quando jovem, a black
outs. Às vezes, até ele duvida da inocência. Para piorar, complicar e
dramatizar mais a situação, Karine era filha do casal Eva e William Hansteen.
Imagine um cara odiado pela cidade, que volta pra tirar
dela sua fonte de renda, mantida pela família cuja filha podia ter morrido em
suas mãos. Quando Aksel retorna, as portas do inferno se abrem e os vikings demonstram como sabem ser
dramáticos e contar uma história profundamente triste, cheia de reviravoltas,
revelações, segredos que vem à tona, ditos e desditos, incesto, alcoolismo,
traição.
Os arquétipos do injustamente condenado que retorna à
casa para limpar seu nome e o do filho pródigo que reaparece bem-sucedido se
coadunam – às vezes, se cancelam - numa
narrativa em que, como na trágica, tudo acontece como o estouro de um dique. O
mundo isolado, autocontido e claustrofóbico de Lijfurd funciona como imã mortal
que prende e atrai de volta seus habitantes e parece existir quase que com
regras próprias, por isso há repetições de julgamentos, tudo meio acelerado
demais, mas a trama fascina tanto que nem nos damos conta quase.
A natureza tem papel metafórico fundamental, uma vez que
cumpre pelo menos duas funções. Primeiro, a velha noção do Nordic Noir de nos
perguntarmos como tanta miséria humana pode ocorrer em cenário tão
deslumbrante. Segundo, a vastidão da montanha e os grandes corpos aquáticos
reforçam o isolamento de Lifjurd, mesmo em nossa era globalizada.
Se Frikjent funciona espetacularmente como drama
familiar, a tentativa de abordar o social se sufoca perante tanta angústia
individual. Há sufocada subtrama que pretende a remunicipalização da Solar Tech.
Para acadêmicos materialistas é passaporte pra comunicações em congressos, pois
dá tranquilamente origem a dissertação ou tese, mas pros espectadores apenas
desvia do que realmente interessa ao roteiro: botar aquelas personagens pra se
autodestruírem pra nossa diversão.
Com elenco estelar pros
escandinavos (ou pra nós fãs deles); correlação com caso policial real que
sacudiu a Noruega nos anos 90; produção esmerada, Frikjent é mais uma série que
posiciona a terra do A-Ha no mesmo patamar de suas irmãs Suécia e Dinamarca. Que bom pra nós
escandinófilos!
Nenhum comentário:
Postar um comentário