domingo, 23 de setembro de 2018

"SUPERANDO" UM GENOCÍDIO

Roberto Rillo Bíscaro

A despeito da tediosa sequência de esquisitices e escândalos, Angelina Jolie tem um lado muito legal que é usar seu prestígio para possibilitar projetos fílmicos de empoderamento feminino. Já resenhei Difret (por que não tem na Netflix daqui ainda?) e A Ganha-Pão (esse tem).
A mais recente aparição da atriz em minha mira foi First They Killed My Father (2017), dirigido e roteirizado por ela, em parceria com Loung Ung, autora do livro que relata todas as barbaridades mostrada no filme. A coprodução ianque-cambojana só aumentou meu respeito pelo modo como Angelina usa parte de sua celebridade.
Pra causar efeito dominó de caos no sudeste asiático, os EUA secretamente encheram de bomba o “aliado” governo do Camboja (com amigo assim, heim?). Com a derrota no Vietnã, os norte-americanos queriam mesmo era que o circo pegasse fogo. E como pegou! O comunista Khmer Vermelho aproveitou a fraqueza do governo central e tomou o poder, iniciando guerra civil e ditadura genocida que ceifou um quinto da população cambojana. O roteiro de Jolie enfatiza o horror da ditadura, mas corretamente aponta que um dos culpados pelo triunfo vermelho no Camboja dos 1970’s foi precisamente o país que mais propaganda anticomuna propaga.
Mas, as espetaculares mais de duas horas de diegese vez mais centram-se nas agruras experienciadas por uma menina vilipendiada de todo jeito, como Difret e Parvana. Jolie ama mostrar histórias de garotas que superam seus traumas e fantasmas, depois de terem comido cobras e aranhas, literalmente no caso de First They Killed My Father (FTKMF).
A história de Loung Ung é de arrepiar. Menininha ainda, com seus cinco anos, é obrigada a deixar o conforto de sua casa de classe média na capital cambojana e inicia dantesca odisseia, marcada por fome, brutalidade e opressão nos campos de “correção”, mantidos pelos déspotas fanáticos do Khmer, que usam o comunismo como desculpa pra descontar recalques e impor sádicas vontades e disciplinas. Quanta atrocidade feita em nome do povo!
Com uma câmera na não, que filma na maior parte a partir do ponto de vista da pequena Loung, Jolie dá aula magna de enquadramento, perspectiva, intercalação de foco de primeira pra terceira pessoa, recurso que paraleliza o intercalar de segmentos de sonho/devaneio, com suas mudanças cromáticas.
Por ser dramática demais, com suas minas terrestres explodindo mães com crianças e gente esquálida de desnutrição, FTKMF não necessita se escorar em melodrama hollywoodiano, tampouco se esforça pra edulcorar a experiência.
Provavelmente não se pode dizer que Loung Ung tenha superado o genocídio que testemunhou, mas seu relato certamente comove e inspira. Procure na Netflix.

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