quarta-feira, 24 de outubro de 2018

CONTANDO A VIDA 254

BRASIL VISTO DE LONGE... 

José Carlos Sebe Bom Meihy 


Sou um professor moldado no mais velho estilo: preparo aulas e apresentações acadêmicas. Todas. Nunca improviso, nunca. Sim, a cada nova aventura dessas me reinvento, e faço isto em respeito a mim mesmo. Não é capricho, não é insegurança, não é detalhe, mas também não é por prazer ou gozo. É, sobretudo, por respeito ao meu ofício e à repetição de modelos. Aprendi isso com mestres que me foram marcas definitivas. Sempre cultivo novidades e com isso me instruo para mediar conhecimentos, expor interpretações e aprender com a experiência alheia. Por mais conhecido que seja o tema, por mais experiência que tenha na matéria, ainda volto aos roteiros de preparação como se fora a primeira vez. Lembro-me à propósito de uma “quadrinha” de um estimado mestre poeta, Cesídio Ambrogi, que declamava, como que em oração, algo próximo de “hoje em minha aula derradeira, faço-a como se fosse a primeira”. Sim, sempre dou aula como se inaugurasse uma estrada indeterminada. Imaginem então quando tenho que cumprir esta missão em outra língua, em país diferente. Pensem também que mantenho o desafio do bom preparo para as apresentações, e até chego ao requinte de escovar os dentes antes de cada novo intento. 

Por motivos variados, a vida tem me proporcionado encontros, cursos, conferências no exterior. Os Estados Unidos, em diferentes oportunidades, tem sido cenário de apresentações. Por generosidade de amigos e pesquisadores brasilianistas, creio que passei por grande parte das escolas que de alguma forma prestam atenção no Brasil. Foi assim que, dias atrás, estive em uma prestigiada Universidade em um desses roteiros. Falava em uma série sobre “Brasil contemporâneo”, e mais precisamente sobre a superação da ditadura nos anos de 1980. Fazia parte de minha pauta assuntos relativos a abertura política, aos movimentos derivados da construção de um ambiente democrático, mais aberto. E no enredo dissertativo arrolava questões afeitas ao cinema, música, teatro. Minha preocupação estava centrada na articulação de arte e cultura. Devo dizer que no melhor estilo norte-americano, eu lia o texto da apresentação. Tudo correu bem até que no final e, durante a abertura para perguntas, o mediador deu voz a um jovem da plateia de cerca de 40 pessoas que, em português do Brasil, perguntou-me em voz alta e impertinente: professor que acha do livro “A verdade sufocada: história que a esquerda não quer o Brasil conheça”? Essa, diga-se, é uma peça escrita pelo Coronel reformado do Exército Brasileiro Carlos Alberto Brilhante Ustra, publicada em 2006. Foi um choque para mim, pois o rapaz, além de desviar o tema, mostrava certa arrogância e intenção venenosa. Demorei alguns minutos antes de responder e duas situações me vieram à mente: 1- o autor foi o primeiro dos militares condenados pelas práticas confessadas de tortura; e 2- da declaração exaltativa que o então deputado Jair Bolsonaro expressou ao votar a favor do impedimento da ex-presidente Dilma Rousseff. Na verdade o autor da obra referenciada fora chefe das sessões de tortura operada no DOI/CODI, organismo máximo da repressão política do regime militar. Tenho por costume não ser deselegante principalmente em ambiente cerimonioso e alheio à minha cultura. Não tinha porém como fugir da questão. Respondi com naturalidade dizendo ao jovem que não conhecia a obra citada, mas que tinha informações biográficas capazes de instruir minha rejeição ao texto produzido por alguém que expressava sua visão pessoal em contraposição a uma alentada historiografia - muito bem documentada, aliás. 

Olhando para o público, com inglês impecável, o rapaz se proclamava fiador de ideias como “justiça feita em nome da defesa anticomunista”, filtrando a tortura como se fosse “ato redentor”, algo “contra terroristas que queriam implantar o modelo cubano no Brasil”. Por um momento deixei-o falar até que outra pessoa pediu minha opinião. Foi a chance que tive para apresentar minha visão de historiador comprometido com versões fundamentadas da disciplina História, e não com visões personalizadas segundo uma defesa que, em últimas palavras fere os direitos humanos e enquadra a democracia em percepções justificadoras de limites. Acho que minha serenidade serviu de ponte para que alguém do público, uma senhora americana, tomasse a palavra em favor da livre expressão, ponderando que o livro em questão poderia/deveria ser lido, mas que o comprometimento da liberdade jamais seria matéria de coerção, em particular de elogio à tortura. Foi o bastante para que outras pessoas se expressassem e daí se desse a derivação para problemas fundamentais da vida social livre. 

Ao fim, vi-me satisfeito por não ter violado regras de bom convívio. Mas meu aprendizado foi além disso, pois pude também absorver o sentido universal dos direitos humanos, e, nessa perspectiva notar o teor repressivo e condenável às manifestações de diminuição da liberdade. Meditando sobre este acontecimento entendi melhor o sentido dado ao título desta crônica: por dentro do Brasil visto de fora.

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