sexta-feira, 26 de outubro de 2018

PAPIRO VIRTUAL 128


Roberto Rillo Bíscaro

Enquanto lia com interesse a ducentena e meia de páginas de Desamparo (2018), não cessava de pensar que se tivesse sido publicado em algum centro realmente importante do capitalismo, os direitos de filmagem já teriam sido comprados, preferentemente para minissérie, já que a TV anda tão em alta e tem mais tempo pra minuciar épicos, como o criado por Fred di Giacomo.
Contista com livros publicados, Fred estreou como romancista com a obra editada pela Editora Reformatório. Desamparo é extremamente imagético e típico da geração do autor – a Wikipedia me contou que nasceu, em 1984: sem vergonha de informalizar a linguagem e ciscar na linha fronteiriça entre ficção e “realidade”. Ao final, o leitor encontra a bibliografia consultada para escrever esse romance, que tem como enredo central o início da colonização branca no noroeste paulista, no final do século XIX.
Di Giacomo nasceu na interiorana Penápolis, a metafórica Desamparo da narrativa. Mas, não é preciso ser penapolense e conhecer a história local (quem conhece?) para se envolver com a história. Como qualquer boa arte, Desamparo se universaliza e a triste história da substituição genocida de uma etnia por outra é a da espécie humana como um todo.
É esse o poder épico que o jovem conseguiu criar, utilizando fartos elementos de realismo mágico/fantástico, que encantará leitores de García Marquez, Borges, mas também aos antigos o bastante para se lembrarem de novelas como Saramandaia, que foi ao ar bem antes de Fred nascer e da qual nem este resenhista se recorda direito, mas a índia que come, come, come não remete à Dona Redonda que explodiu? Tanto o falecido Dias Gomes, quanto o jovem (not really!) game designer roqueiro hipster bebem na mesma fonte nesta pós-pós-modernidade, na qual essa história de há mais de cem anos ainda faz tanto sentido.
Talvez a maior tragédia de Desamparo seja poder ser sumarizado como ainda somos e pensamos como os tataravós de nossos tetravós.  Disso tem consciência a desencantada, mas um pouco esperançosa narradora. Pena para nós – não para o livro –, que não dê realmente para crer nesse fio de esperança; soa mais como se enganar para justificar continuar existindo.
Apesar de tratar do ocaso de um povo e início do domínio de outro (que vive em briga, então pode acabar como o que exterminou), Desamparo é ágil. Atinados com nossos tempos de farta oferta de histórias em diversas mídias, os capítulos são curtos, então dá pra ler de boa no trajeto do metrô ou no pouco tempo livre que geralmente nos sobra hoje.
Alguém já disse que Fred sabiamente evitou reproduzir alguma suposta linguagem caipira centenária. Muito bem apontado. Esperto, o menino sabia que incorria no risco de pagar mico soando postiço (fake, como amam os descoletes agora), além de tornar a leitura desnecessariamente complicada e pesada. Longe de ser pedestre, a linguagem não tenta imitar sotaques, mas, é bem coloquial. Atente, porém, para algumas frases totalmente citáveis.
Ser imagético não necessariamente garantiria bom filme ou série. No máximo, grandes quadros. Desamparo motiva o leitor a querer seguir, tem reviravoltas, personagens excentricamente interessantes, cenas de ação e gore (yeah!).
Leitores mais frequentes sabem que este blogueiro é fã de ficção-científica envolvendo discos-voadores, contatos com alienígenas. Essa curiosidade é puramente ficcional. Não tenho a menor vontade de que nós terráqueos os contatemos. Pelo menos não enquanto eu esteja por aqui. Ler o sertanejo Desamparo só reforçou essa convicção: e se os ETs estiverem para nós, como os brancos para os caingangues? Melhor não arriscar: pelo menos esperem até que eu morra.
Recomendo ativamente o livro, que pode ser comprado pelo link:

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