Roberto Rillo Bíscaro
O Sertanilia caracteriza sua música como sertanesa,
feminino do sertanês utilizado nas obras de Elomar Figueira Mello. Segundo o
trio, o neologismo foi criado para se diferenciar de "sertanejo",
palavra que foi perdendo o real significado e se distanciando do universo do
sertão à proporção em que foi empregada pelo mercado musical das grandes
gravadoras.
Formado em 2010, o Sertanilia é composto por Aiace
(vocais), Anderson Cunha (violão, bandolim e viola) e Diogo Flórez (percussão).
São sempre acompanhados por João Almy (violão), Fernanda Monteiro (violoncelo),
Mariana Marin (percussão) e Raul Pitanga (percussão). Essa profusão de
instrumentos traduz-se em riqueza sônica inspirada nas diversas manifestações
culturais do sertão, como cocos, maracatus, sambadas e ternos de reis. Sem
sucumbir a folclorismos anacrônicos na produção, os baianos mesclam com
destreza boa dose de contemporaneidade às tradições que querem registrar.
Premiado e com diversas apresentações em países como
Portugal, Holanda e Espanha, o Sertanilia tem dois álbuns, que podem ser
baixados gratuitamente no link:
O primeiro álbum, Ancestral (2012), foi apoiado pelo
Conexão Vivo e Governo do Estado da Bahia. São 14 faixas, onde o grupo apresenta
canções autorais e releituras. Traz convidados especiais, como Bule-Bule,
Xangai e os percussionistas pernambucanos Nego Henrique e Emerson Calado, que
fizeram parte do Cordel do Fogo Encantado e Gilú Amaral, da Orquestra
Contemporânea de Olinda.
Além das regravações e do material próprio, o Sertanilia
salpica Ancestral com vinhetas extraídas de material autêntico dos grupos de
Folia de Reis que pesquisa. É o caso de Areia do Mar, Canto de Chegada e Canto
de Despedida. Em Eu Vou Embora Daqui, a música sertanesa autêntica é misturada
com efeitos de estúdio, como sinos, choros e contracantos meio clérico-góticos.
Polida produção e simbiose entre tradição e ruptura
garantem o apelo universalizante do Sertanilia. Tome-se o caso de Ciranda do
Fim do Mundo. Inspirada no ritmo do título, a canção é porém, tensa, densa;
espécie de neurótica ciranda urbana, em consonância com a letra-denúncia da
roda-viva do consumismo contemporâneo.
Felizmente, porém, existe muito tempo e espaço pra
lirismo e felicidade em Ancestral. Sambada de Reis e Nobre Folia são pura
ferveção de Reis; Pombinha do Céu é catirento coco, ritmo que também informa
Pras Bandas de Lá. Mas, note como os momentos finais da canção orientalizam-se
num clima 1001 Noites. E quem disse que a ibérica Folia de Reis não tem
influência mourisca?
A linda voz de Aiace incandesce
o clima sertão-carcará de Incendeia e emociona na longa Meus Buritizais Levados
de Verde, lamento fúnebre, que tem recitação de trecho decisivo de Grande
Sertão: Veredas.
Em 2017, o Sertanilia voltou com Gratia, 14 faixas,
contando com as vinhetas extraídas de reinados autênticos do alto sertão baiano
e trechos de puro depoimento de História Oral.
Exceto pela faixa-título, Gratia vem menos brejeiro e bem
mais épico, como atesta O Mundo de Dentro da Minha Cabeça. A poderosa percussão
contribui pra epicização do sertão, como a da galopante Balada Para Uma
Vingança. Os baianos não se rendem à folclorização ingênua de jeito nenhum:
veja como a embolada de Corre Canto é urbana e modernamente urgente e nervosa e
a letra de Gado Manso fala muito mais do que dos bovinos, mas de massificação e
manipulação midiáticas. Como não se vive apenas de ápices, Confissão é lamento
embalado por violão e violoncelo.
A tradição de reis é fruto
do encontro da herança ibérica das festas da Natividade - vindas com o
imigrante galego-português - com a cultura dos descendentes dos africanos
cativos no sertão, resultado numa expressão popular única. Gratia veio cheio de
referências hispânicas: a espanhola Gaudi Galego dueta com Aiace em Devagar; há
linda faixa chamada Castela; musicalização de parte da cantiga de amigo Flores
do Verde Pinho, de D. Dinis; além de referências instrumentais à musica galega
no decorrer do álbum.
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