quarta-feira, 28 de novembro de 2018

CONTANDO A VIDA 258

SOBRE “VIRAR O DISCO”, “MEIA SOLA” E “PÁ DE CAL”. 

José Carlos Sebe Bom Meihy 

Por acaso, há pouco tempo, havia conversado com amigo sobre palavras e ditos populares que mudam de sentido à medida que o tempo passa. Essas conversas são sempre interessantes, posto darem medida da força da língua viva e do nosso envelhecimento. Por coincidência, dia desses, me vi explicando a um jovem de seus 12 anos o que significava “mudar o disco”. Foi engraçado, pois a expressão ainda é frequente e eu mesmo me vejo aplicando-a constantemente. Depois de detalhar a evolução das gravações dos “biscoitos”, daqueles discos de 78 rotações, pretos, grossos, quebradiços, detalhei o advento dos LPs com repertório bem maior de canções, de qualidade de som inigualável, e com capas artísticas. Falei também dos mini-discs, gravações que continham poucas músicas e às vezes eram até coloridos, de plástico. A conversa se transformou em viagem ao passado e uma ponte para o presente. Passadas as primeiras informações, expliquei que com o tempo “mudar o disco” tinha se convertido no sentido usual de “mudar de assunto”, em particular, quando o tema de conversas tinha chegado a um limite, ou se esgotado. A imagem do jovem interlocutor se iluminou ao relacionar a mudança de música com o “outro lado da gravação” ou mesmo com a substituição de interpretações. 

E foi assim que progredi para explanar a metáfora da “meia sola”, remetendo-me ao aproveitamento do sapato de sola gasta, como se fazia antigamente. Exercitei, neste caso, minhas habilidades históricas, e lembrei que em países colonizados, em particular naqueles que se regeram pelo trabalho escravo, ter sapatos era sinônimo de status social. E até puxei a conversa para os dias de minha infância e juventude, ocasião em que ainda a indústria de calçado não havia alçado os padrões atuais – que, aliás, coloca o Brasil como grande produtor. Novas admirações se estamparam no olhar curioso do quase mocinho. Saber que havia profissionais específicos e estabelecimentos para promover o aproveitamento dos sapatos, com remendos sucessivos, foi novidade para quem hoje goza do privilégio de reposições frequentes. No embalo da conversa fiada, perguntei: você sabe o que significa “colocar pá de cal”? E nem precisei da negativa; fui logo explicando que os enterros de mortos eram feitos em covas rasas e que para evitar o mau-cheiro se colocava cal. A decorrência disto resultou no significado de “fim de conversa”, ou, como seria mais apropriado “fim de papo”. 

Passados momentos do fim desse “papo legal” com o jovem, fiquei meditando sobre o impacto da atualização da linguagem em geral. Encontrei amparo em leituras que tantos prazeres me dão, como as de Marcos Bagno, prezando a dinâmica da língua. Correlato da vida humana, as línguas variam, as expressões mudam, e as palavras ou morrem ou ressuscitam com outras significações. De tal forma, me entretive nessas constatações que me permiti um mergulho mais consequente, quase filosófico: o que me diriam, hoje, tais expressões? E flanando no livre pensar, como se estivesse em estágios loyolanos atentos aos “exercícios espirituais”, fiz ligações convenientes. Considerei minha perplexidade política, em particular com os resultados das últimas eleições, como denominador comum. Foi mecânica a indicação de que era hora de “mudar o disco”. Chega, pensei. O curto período de campanha foi extenso demais para as retaliações, desavenças, brigas e exaltação de temperamentos. Vamos “mudar o disco”, aflorou-me o dito popular atualizado na incapacidade de entendimento do vertiginoso veredito democrático: eles ganharam. Foi quando, então, me veio à cabeça o segundo ditado “meia sola”. Professando a crença no vigor da sabedoria popular, professei que era hora de colocar “meia sola” em minhas ideias e, mais que aceitar a derrota política, deveria remendar meu incontrolado radicalismo e aproveitar da situação. Logo despontou a ideia de que ser oposição era o forte dos seguidores de minha orientação política. E comecei a sentir firmeza na honrosa derrota eleitoral. Percebi também que faria parte da “meia sola” supor o renascimento das ideais que, por falidas, levaram o partido que aprecio a perder sua cara inaugural, e, o que é mais sintomático, ter perdido exatamente nos rincões que lhe serviram de base. Com certo júbilo, por fim, concluí que era necessário por uma “pá de cal” no meu esforço isolado de lutar contra a correnteza. Ser democrata, afinal, deveria me significar “mudar o disco”, pôr “meia sola” e por fim jogar uma “pá de cal” no tema.     


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