terça-feira, 25 de dezembro de 2018

TELINHA QUENTE 341

Roberto Rillo Bíscaro

Qualquer abuso sexual é indigno, mas o estuprador serial Roger Abdelmassih é especialmente abjeto, porque se aproveitava da posição de macho de prestígio e mando para assediar mulheres fragilizadas. Numa sociedade que eleva a maternidade a níveis quase impossíveis de dedicação e amor, ser infértil deve ser traumatizante. Assim, decidir-se por fertilização artificial tem implicações emocionais e financeiras que deixam mulheres especialmente vulneráveis. E nem falo da literal indefesa causada pela anestesia, que o ex-médico não se furtava de aproveitar.
O roteiro da ótima Assédio, minissérie que a Globoplay adicionou a seu catálogo, há alguns meses, é livremente inspirado no infame caso do Doutor Vida, que infelizmente, ora se repete com renomado médium, outro macho em posição de poder sobre gente desesperada.
Os dez capítulos oferecem repulsiva pintura íntima de Roger Sadala e de algumas das mulheres assediadas. Repulsiva não deve ser entendido como de baixa qualidade, pelo contrário, Assédio está entre as coisas mais poderosas que vi em 2018 e o pra mim tão simpático Antônio Calloni conseguiu me fazer ter nojo dele, ou melhor, da personagem. O mérito não é apenas seu, todo mundo está ótimo, com destaque também pra destruída Stella, de Adriana Esteves.
Assédio é filmada em tons sombrios, com música austera; não é fácil, rápida e divertida de assistir. Amora Mautner, Joana Jabace, Guto Arruda Botelho e equipe não espetacularizaram a miséria de tanta gente. A história de ascensão e queda de Roger é contada de forma temporalmente fragmentada, intercalada com depoimentos das vítimas ficcionais, num trabalho de montagem que, além de competente, empresta caráter quase de docudrama à produção.
Assim que o escândalo eclode, na metade da mini, a narrativa se acelera. É como se a forma acompanhasse a trama, porque, embora saibamos o desfecho do Roger real (“preso” numa casa diversas vezes maior que a minha, de cidadão “livre”), vivemos diegeticamente o nervosismo das denúncias, depoimentos, fugas e captura.
Através do relacionamento consigo mesmas e com suas famílias, percebemos algumas das sequelas menos aparentes da brutalidade a que as mulheres foram submetidas. O medo do opróbrio social; a incerteza da paternidade; os sutis, mas não menos dolorosos, atos falhos de maridos e familiares, que demonstram como a culpabilização muito frequentemente recai na própria agredida. E, paralelamente, mergulhamos cada vez mais na doentia psiquê do médico, que se crê imbuído de poder divino, numa perigosa mistura de pseudo-fé religiosa, falsa ciência e, claro, misoginia abissal.
Assédio é doído e necessário atestado de que o Brasil também está sintonizado com a tão (de)cantada Idade de Ouro da televisão.

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