Roberto Rillo Bíscaro
Qualquer abuso sexual é indigno, mas o estuprador serial
Roger Abdelmassih é especialmente abjeto, porque se aproveitava da posição de
macho de prestígio e mando para assediar mulheres fragilizadas. Numa sociedade
que eleva a maternidade a níveis quase impossíveis de dedicação e amor, ser
infértil deve ser traumatizante. Assim, decidir-se por fertilização artificial
tem implicações emocionais e financeiras que deixam mulheres especialmente
vulneráveis. E nem falo da literal indefesa causada pela anestesia, que o
ex-médico não se furtava de aproveitar.
O roteiro da ótima Assédio, minissérie que a Globoplay
adicionou a seu catálogo, há alguns meses, é livremente inspirado no infame
caso do Doutor Vida, que infelizmente, ora se repete com renomado médium, outro
macho em posição de poder sobre gente desesperada.
Os dez capítulos oferecem repulsiva pintura íntima de
Roger Sadala e de algumas das mulheres assediadas. Repulsiva não deve ser
entendido como de baixa qualidade, pelo contrário, Assédio está entre as coisas
mais poderosas que vi em 2018 e o pra mim tão simpático Antônio Calloni
conseguiu me fazer ter nojo dele, ou melhor, da personagem. O mérito não é
apenas seu, todo mundo está ótimo, com destaque também pra destruída Stella, de
Adriana Esteves.
Assédio é filmada em tons sombrios, com música austera;
não é fácil, rápida e divertida de assistir. Amora Mautner, Joana Jabace, Guto
Arruda Botelho e equipe não espetacularizaram a miséria de tanta gente. A
história de ascensão e queda de Roger é contada de forma temporalmente
fragmentada, intercalada com depoimentos das vítimas ficcionais, num trabalho
de montagem que, além de competente, empresta caráter quase de docudrama à
produção.
Assim que o escândalo eclode, na metade da mini, a narrativa
se acelera. É como se a forma acompanhasse a trama, porque, embora saibamos o
desfecho do Roger real (“preso” numa casa diversas vezes maior que a minha, de
cidadão “livre”), vivemos diegeticamente o nervosismo das denúncias,
depoimentos, fugas e captura.
Através do relacionamento consigo mesmas e com suas
famílias, percebemos algumas das sequelas menos aparentes da brutalidade a que
as mulheres foram submetidas. O medo do opróbrio social; a incerteza da
paternidade; os sutis, mas não menos dolorosos, atos falhos de maridos e
familiares, que demonstram como a culpabilização muito frequentemente recai na
própria agredida. E, paralelamente, mergulhamos cada vez mais na doentia psiquê
do médico, que se crê imbuído de poder divino, numa perigosa mistura de
pseudo-fé religiosa, falsa ciência e, claro, misoginia abissal.
Assédio é doído e
necessário atestado de que o Brasil também está sintonizado com a tão
(de)cantada Idade de Ouro da televisão.
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