segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

ANDREZA ARRASA

Andreza Aguida, a albina que faz de sua autoimagem uma forma de ativismo
"O albinismo traz limitações e cuidados, mas não impossibilita a gente."
Começa de costas, com dois ventiladores em funcionamento, um de cada lado. O longo cabelo branco se move de acordo com o vento. Aos poucos, Andreza Aguida, 38 anos, se vira. Às vezes fecha os olhos por alguns instantes, altera a velocidade dos ventiladores e o cabelo continua voando pelo seu rosto de forma aleatória. Ao fundo, coloca uma projeção de tempo ruim e segue ali, em pé, entre o vento. Esta é uma das performances criadas por ela. “Chama ‘Brincando com a Tempestade’ e dialogo muito como o meu processo histórico. Questiono essa questão da figura da mulher, vista como frágil, aliada ao albinismo e às questões de pele sensível, problemas de visão e fico brincando e me movimentando e a mensagem é estar firme e íntegra em meio às tempestades da vida, porque elas passam”. Andreza passou por várias delas ao longo da vida e resolveu colocar essa experiência pessoal em seus trabalhos artísticos. “Eu vivo isso ainda, as pessoas me fragilizam muito por causa da condição de albina e também pelo feminino. Uso todas essas indagações para criar”.
Hoje, grande parte de seus trabalhos está diretamente ligado a sua identidade e sua imagem. Considerada uma doença pelo Classificação Internacional de Doenças (CID), Andreza tem albinismo, mas não gosta de associar sua condição a um estado de saúde frágil. “Não falo que sou doente, falo que sou albina. É uma doença, mas o albinismo em si não te mata, mas traz consequências que podem te matar. Eu prefiro definir como uma condição genética porque o que acontece é que muita gente vê os albinos como coitadinhos e estamos num processo de quebrar isso. É uma doença porque está no Código Internacional de Doenças, mas estamos vivendo, eu trabalho, estudo, faço um monte de coisa. Traz limitações e cuidados, mas não impossibilita a gente”.



E ela que o diga. Formada em engenharia elétrica, trabalhou durante dez anos na área. Depois, após uma demissão e uma desilusão com a carreira, foi fazer, aos 28 anos, uma nova formação em educação física. Fez intercâmbio, morou em Portugal por seis meses, viajou sozinha, fez um curso no Japão, fez mochilão. Deu aula de elétrica na Fundação Casa e de alongamento no Parque da Água Branca, em São Paulo. Em meio a tudo isso, começou a se envolver com trabalhos artísticos. Hoje, faz performances, canta em hospitais e atua como modelo também. Além disso, participa de grupos de albinos para disseminar e trocar informações e promover debates sobre o tema.

O grande objetivo que tem com todas as suas atuações é mostrar que ela, assim como qualquer outra pessoa albina, é capaz. “Tem albino que se aposenta precocemente porque é pessoa com deficiência e pode fazer isso. Mas eu não quero ser uma pessoa que pode se aposentar, quero que se vejam como capazes de trabalhar e conseguir coisas. A aposentadoria existe, é um direito, mas não justifica me aposentar por invalidez porque eu não sou inválida. Tento mostrar que é mais interessante você vislumbrar um emprego, conviver com outras pessoas, fazer, agir, existir e não ficar em casa, porque muitos se submetem e a isso e é uma batalha não cair nessa visão do assistencialismo”.


Outra via forte do trabalho de Andreza é em relação aos processos de aceitação – sempre passando pelo seu próprio também. “Como comecei a dar minha cara a tapa, mostrar minha imagem, sair com o cabelo sem pintar, outros albinos também começaram a ressignificar esse olhar, ver beleza na própria imagem porque muitos escondem, pintam a sobrancelha e o cabelo para passar despercebida e eu não passo despercebida, não tem jeito”. E nem quer isso. Exibe com orgulho seus cabelos e se mostra confortável com sua condição hoje. “Não condeno quem queira pintar, mas acho que o intuito é mostrar que ela pode pintar, mas ao mesmo tempo também pode valorizar e ver beleza em sua essência, que é o branco. Sem condenar, um monte de gente pinta o cabelo, mas uma coisa é pintar porque quer diversificar e outra porque quer se esconder”.

Mas sabe que não é um processo fácil. Desde adolescente enfrenta limitações e deixa claro há dificuldades. Andreza lembra que com seus 13 anos era “bem rebelde”. O tipo de albinismo que ela tem afeta a visão – por causa da ausência de pigmentação isso pode acontecer, mas não afeta todo os albinos. Andreza tem acuidade visual de 10% – e isso era algo difícil para ela. Conta que queria andar de bicicleta, fazer as coisas sozinha e se sentia limitada. “Mas com uma 16 anos me deu um clique de que precisava me aceitar e que as coisas não iam mudar, a realidade é essa”.

Assim encarou a vida e suas vontades. E não se deixou abater. Foi estudar, buscou suas coisas. Sofreu durante a faculdade, mas concluiu o curso e criou uma carreira. E depois resolveu mudar tudo quando sentiu que algo estava faltando. “Na engenharia faltava uma humanidade e para mim foi mais difícil ser mulher do que ser albina, ouvi muita coisa, sofri bullying, a turma dos maldosos chacotavam mesmo, me colocavam lá embaixo, era um alvo de piadas e fui engolindo sapo”.

E quando mudou tudo, junto com a nova carreira, encontrou o seu próprio corpo. A presença em academia começou na época em que era engenheira, para desestressar, e ficou encantada com a relação entre professor e aluno e quis investir nessa profissão. “Na educação física descobri a corporeidade, eu não tinha nada, era só área técnica, nunca tinha olhado para o corpo e fui descobrindo isso”. Começou a participar de workshops, eventos e logo estava criando projetos com suas performances – e sendo contemplada. “O primeiro eu chamei de ‘Percebendo’ e eu dialogava com o espaço físico, sem privilegiar a visão. Eu questionava o que você acessava do espaço, sentir as texturas porque geralmente você faz a leitura visual, mas não encostou em nada. E a partir disso deu certo, comecei a dialogar com a minha imagem e foram acontecendo as coisas”.

Abraçou essa nova carreira. E paralelo a isso, Andreza já atuava há bastante tempo com o grupo de albinos. Ela criou uma comunidade nas redes sociais a partir da vontade de conhecer outras pessoas como ela. “Eu tenho mais dois irmãos albinos e queria ver outros, não tinha visto mais nenhum na vida e fui pesquisar na internet e só tinha comunidade negativa. Era coisa como ‘tenho medo e nojo de albinos’, ‘brancos feios’, era horrível e aí resolvi criar uma”. Hoje o grupo já migrou de plataforma e conta com cerca de 1700 membros, entre albinos e pais de crianças albinas. No futuro, ela gostaria de criar uma associação de albinos e pretende atingir mais pessoas.

Segundo Andreza, quem mais precisa de assistência são aquelas que não acessam a internet. “Minha preocupação é com essas pessoas. Mas hoje tem mais informação. E acompanho os projetos de lei no senado, escrevo para os deputados, falo da necessidade de políticas públicas, mostro que a gente existe, que não é uma ilusão. Há um projeto de política nacional voltado a quem tem albinismo para distribuição de protetor solar para pessoas de baixa renda, distribuição de óculos. Isso é importante”.

Acredita que será possível conquistar esses direitos. Pode levar um pouco de tempo, mas isso faz parte, ela bem sabe. E está tranquila e disposta a esperar – e batalhar – por essas mudanças. Como fez em outros momentos de sua vida. “Fui levando mais na esportiva até os apelidos. Quando me chamavam de ‘branquela’ eu odiava. Hoje, se falam isso, eu digo que sou mesmo. Se estão me olhando muito, eu mando um beijo, dou tchau, comecei a mudar a forma como dialogava com isso. Hoje eu uso a minha imagem a meu favor. Tudo que eu vivi, fez eu ser o que eu sou”.

Não importa o tamanho – e a força – da tempestade.

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