segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

CAIXA DE MÚSICA 347


Roberto Rillo Bíscaro

Vamos iniciar o ano com uma trinca de vozes negras femininas, que poderiam ter mais reconhecimento?

Quando não se tem a estrutura promocional sequer de gravadora pequena, o artista tem que fazer bastante show e sua fama ir crescendo pelo boca-a-boca. Conya Doss e sua multiplicidade de influências encaixa-se na categoria.
Sua sedosa competência vocal pode não ter fama global, mas longevidade e alta qualidade já lhe garantiram a alcunha The Queen Of Indie Soul.
Natural de Cleveland e fã de Bonnie Raitt, The Doobie Brothers, Stevie Wonder, Prince, Nina Simone e símiles, Conya lançou seu primeiro álbum, em 2002, quando lecionava para crianças com necessidades específicas.
Merecidamente querida de sites especializados em música negra, Conya Doss lançou seu oitavo álbum em outubro. Clear tem treze faixas que agradarão muito a fãs de soul music de fim dos 70’s/primeira metade dos 80’s.
A maioria das faixas navega em variações de urban soul e quiet storm, muito elegantes, deslizáveis. Homogeneidade é bom, mas quando algo apresenta elemento diferenciador, imediatamente se destaca. É o caso do adorável chuvisco de piano em Until; o jazz mais proeminente de Don’t Rain ou a balada mais incisiva de Unbreakable. O único número agitado é a midtempo disco Get Off Of Your Ass e é só no final que aprecem as duas faixas com dado contemporâneo, trap. Em Hurricane, há que se prestar atenção pra detectar o moderado nervosismo que acompanha o doce vocal e o pianinho. Misconception é onde a modernidade se faz mais audível e se Clear fosse inteiro nessa toada, não se destacaria do pedestre da produção atual.
Lynne Fiddmont está na indústria há um bom tempo e experiência é o que não lhe falta. Natural de St. Louis, já fez backing pra Stevie Wonder, Natalie Cole, Phil Collins, Barbara Streisand e Seal.
Em carreira-solo também lhe sobra prática: ano passado, saiu seu quarto álbum, Power Of Love. Dúzia de covers e originais muito bem produzidos e difíceis de desagradar corações sequiosos por slow jams de soul e afins.
Quer dizer, são onze faixas, porque os primeiros segundos são ocupados pela dispensável vinheta Sing It Chace. Que mania esses cantores soul hoje têm de colocar essas coisas nos álbuns; neste caso ainda, uma criança desafinada. Cortei quando fiz a playlist.
A parte musical é hino pra quem ama old school setentista/oitentista. Navegando pelo soul jazz, como em Daylight, Go e Memory Lane, Lynne oferece produto elegante e extremamente bem cantado. Quando se distancia do urban soul predominante, ela também brilha. Power of Love, a faixa-título é jazzy na tradição sexy chique, de Sade, com saxofone e tudo. Walkin’ On Rainbows é disco funk momento mais saltitante de Power Of Love. Groovy People tem sabor Motown e quem amava Djavan nos 80’s, adorará o arranjo. E por falar em Brasil, é no sambinha que pretende virar sambão, de Good Time Party, que o álbum leva seu maior escorregão. Tentando contextualizar a diversão de festa do título, a canção tem incessante ruído de fundo de gente rindo e conversando alto, como se se divertindo. Eles podem estar tendo um tempo bom, mas o ouvinte se irrita com o converseiro. Parece vinheta alargada. Basia e seu Matt Bianco fazem samba melhor. Outra exilada da playlist.
Fiddmont faz duas escolhas corajosas de cover. Imagine - aquela canção anticapitalista ateia, que tantos cristãos privatistas amam – troca o predomínio de piano de Lennon, pela supremacia das cordas e transforma o clássico em soul. Para os fãs deste estilo, porém, o grande desafio é Lovin’ You, da falecida-cedo-demais Minnie Riperton. Se você é jovem demais, melhor contextualizar. Escute a versão original:


Como competir ou rivalizar esse arranjo tão destemidamente doce de Steve Wonder e o alcance vocal de Minnie depois do doo roo doo roo? Essa é uma das canções mais idiossincráticas da soul music. Lynne Fiddmont se sai bem ao não tentar imitar Minnie, num arranjo mais jazz mainstream esfumaçado, cujo vocal intensifica-se e sofistica-se aos poucos. Ficou outra coisa, ficou boa. (mas, sempre dava vontade de ouvir a da Minnie, afinal, sou da época em que tocava no rádio AM e tudo, então, é a versão eterna, a única que me faz sentido). 


Outra grande vocalista, que lança álbuns independentes e possui poucos ouvintes nos Spotifies da vida é Lori Williams. Por isso, é importante rede blogueira/de sites divulgadora e ouvintes curiosos pra procurar novidades, que não aparecem nos hegemônicos Faustão ou SNL.
Filha da rigorosos pais batistas, Lori cresceu ouvindo gospel, na capital norte-americana, mas expandiu seus gostos pra Prince, Michael Jackson e vocalistas de jazz, à Anita Baker, aos quais, aliás, os álbuns de Lori servem como luvas.
Influenciada pela mãe professora e ciente de que deveria ter profissão segura, porque nem todo mundo ganha grana só com música, Williams se formou docente e hoje divide seu tempo entre festivais de jazz ao redor do mundo, lecionar, ensaiar corais, fazer backing vocals pra gente como Maysa Leak e Phil Perry e lançar álbuns.
O mais recente é Out Of the Box (2018), cujo título refere-se a sutil guinada estética. Em 2017, Lori Williams já soltara single “fora de seu quadrado”: Déjà vu foi popularizada mundo afora, em 1979, por Dione Warwick, mas não é jazz, com o qual Lori sempre esteve associada. Trata-se de elegante soul. Esse é o pensar fora da caixa da norte-americana: ela abraçou um estilo mais neo-soul ou soul jazz, que não pode escapar do radar de quem ama Quiet Storm, Acid Jazz e adjacências.
O álbum é deleite do começo ao fim. Desde a elegância dos nuançados arranjos de confeitos dândis, como Sailing On a Dream, que farão a glória de fãs de FM sofisticada de fins dos ‘70’s até hoje. A voz sedosa de Lori merece que retornemos pra ela um dos versos de I Like The Way You Talk (To Me): I love the sound of your sweet, sexy voice. Duvido que fãs de Basia não amem I Can’t Help It.
Quem curte Anita Baker, Maysa Leak, não pode deixar de ouvir Out Of The Box, aliás, Maysa participa de Where’s That Smile. O álbum tem umas 3 ou 4 faixas com bofe duetando ou participando, tem uma que até começa com dialogo meio sexy à Barry White: Let’s Walk, cuja percussão orgulharia Sade. Quando entrar o solo de trompete na mkidtempo Hold On, você começará a desfilar e jogar o cabelo pra tudo quanto é lado. Podre de chique. Our Love is Real parece lenta arrasante da Rose Royce, começando.
O único momento jazz mais denso e só com piano é a clássica ‘Round Midnight, da lavra 194entista de Thelonious Monk. Lori Williams tem voz treinada o suficiente pra dominar o complexo fraseado jazz, mas em um álbum de arranjos tão polidos de neo-soul, a canção fica meio fora de lugar. Mas, longe dizer que compromete. Nada. Recomendo com fervor.

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