Vamos iniciar o ano com uma trinca de vozes negras
femininas, que poderiam ter mais reconhecimento?
Quando não se tem a estrutura promocional sequer de
gravadora pequena, o artista tem que fazer bastante show e sua fama ir
crescendo pelo boca-a-boca. Conya Doss e sua multiplicidade de influências
encaixa-se na categoria.
Sua sedosa competência vocal pode não ter fama global,
mas longevidade e alta qualidade já lhe garantiram a alcunha The Queen Of Indie
Soul.
Merecidamente querida de sites especializados em música
negra, Conya Doss lançou seu oitavo álbum em outubro. Clear tem treze faixas
que agradarão muito a fãs de soul music de fim dos 70’s/primeira metade dos
80’s.
A maioria das faixas navega
em variações de urban soul e quiet storm, muito elegantes, deslizáveis.
Homogeneidade é bom, mas quando algo apresenta elemento diferenciador,
imediatamente se destaca. É o caso do adorável chuvisco de piano em Until; o
jazz mais proeminente de Don’t Rain ou a balada mais incisiva de Unbreakable. O
único número agitado é a midtempo disco Get Off Of Your Ass e é só no final que
aprecem as duas faixas com dado contemporâneo, trap. Em Hurricane, há que se
prestar atenção pra detectar o moderado nervosismo que acompanha o doce vocal e
o pianinho. Misconception é onde a modernidade se faz mais audível e se Clear
fosse inteiro nessa toada, não se destacaria do pedestre da produção atual.
Lynne Fiddmont está na indústria há um bom tempo e
experiência é o que não lhe falta. Natural de St. Louis, já fez backing pra Stevie
Wonder, Natalie Cole, Phil Collins, Barbara Streisand e Seal.
Em carreira-solo também lhe sobra prática: ano passado, saiu
seu quarto álbum, Power Of Love. Dúzia de covers e originais muito bem
produzidos e difíceis de desagradar corações sequiosos por slow jams de soul e afins.
Quer dizer, são onze faixas, porque os primeiros segundos
são ocupados pela dispensável vinheta Sing It Chace. Que mania esses cantores
soul hoje têm de colocar essas coisas nos álbuns; neste caso ainda, uma criança
desafinada. Cortei quando fiz a playlist.
A parte musical é hino pra quem ama old school
setentista/oitentista. Navegando pelo soul jazz, como em Daylight, Go e Memory
Lane, Lynne oferece produto elegante e extremamente bem cantado. Quando se
distancia do urban soul predominante, ela também brilha. Power of Love, a
faixa-título é jazzy na tradição sexy chique, de Sade, com saxofone e tudo.
Walkin’ On Rainbows é disco funk momento mais saltitante de Power Of Love. Groovy
People tem sabor Motown e quem amava Djavan nos 80’s, adorará o arranjo. E por
falar em Brasil, é no sambinha que pretende virar sambão, de Good Time Party,
que o álbum leva seu maior escorregão. Tentando contextualizar a diversão de
festa do título, a canção tem incessante ruído de fundo de gente rindo e
conversando alto, como se se divertindo. Eles podem estar tendo um tempo bom,
mas o ouvinte se irrita com o converseiro. Parece vinheta alargada. Basia e seu Matt Bianco fazem samba melhor. Outra exilada da playlist.
Fiddmont faz duas escolhas
corajosas de cover. Imagine - aquela canção anticapitalista ateia, que tantos
cristãos privatistas amam – troca o predomínio de piano de Lennon, pela
supremacia das cordas e transforma o clássico em soul. Para os fãs deste
estilo, porém, o grande desafio é Lovin’ You, da falecida-cedo-demais Minnie
Riperton. Se você é jovem demais, melhor contextualizar. Escute a versão
original:
Como
competir ou rivalizar esse arranjo tão destemidamente doce de Steve Wonder e o
alcance vocal de Minnie depois do doo roo doo roo? Essa é uma das canções mais
idiossincráticas da soul music. Lynne Fiddmont se sai bem ao não tentar imitar
Minnie, num arranjo mais jazz mainstream esfumaçado, cujo vocal intensifica-se
e sofistica-se aos poucos. Ficou outra coisa, ficou boa. (mas, sempre dava
vontade de ouvir a da Minnie, afinal, sou da época em que tocava no rádio AM e
tudo, então, é a versão eterna, a única que me faz sentido).
Outra grande vocalista, que lança álbuns independentes e
possui poucos ouvintes nos Spotifies da vida é Lori Williams. Por isso, é
importante rede blogueira/de sites divulgadora e ouvintes curiosos pra procurar
novidades, que não aparecem nos hegemônicos Faustão ou SNL.
Filha da rigorosos pais batistas, Lori cresceu ouvindo
gospel, na capital norte-americana, mas expandiu seus gostos pra Prince,
Michael Jackson e vocalistas de jazz, à Anita Baker, aos quais, aliás, os
álbuns de Lori servem como luvas.
Influenciada pela mãe professora e ciente de que deveria
ter profissão segura, porque nem todo mundo ganha grana só com música, Williams
se formou docente e hoje divide seu tempo entre festivais de jazz ao redor do
mundo, lecionar, ensaiar corais, fazer backing
vocals pra gente como Maysa Leak e Phil Perry e lançar álbuns.
O mais recente é Out Of the Box (2018), cujo título
refere-se a sutil guinada estética. Em 2017, Lori Williams já soltara single
“fora de seu quadrado”: Déjà vu foi popularizada mundo afora, em 1979, por
Dione Warwick, mas não é jazz, com o qual Lori sempre esteve associada.
Trata-se de elegante soul. Esse é o
pensar fora da caixa da norte-americana: ela abraçou um estilo mais neo-soul ou
soul jazz, que não pode escapar do radar de quem ama Quiet Storm, Acid Jazz e
adjacências.
O álbum é deleite do começo ao fim. Desde a elegância dos
nuançados arranjos de confeitos dândis, como Sailing On a Dream, que farão a
glória de fãs de FM sofisticada de fins dos ‘70’s até hoje. A voz sedosa de
Lori merece que retornemos pra ela um dos versos de I Like The Way You Talk (To
Me): I love the sound of your sweet, sexy voice. Duvido que fãs de Basia não
amem I Can’t Help It.
Quem curte Anita Baker, Maysa Leak, não pode deixar de
ouvir Out Of The Box, aliás, Maysa participa de Where’s That Smile. O álbum tem
umas 3 ou 4 faixas com bofe duetando ou participando, tem uma que até começa
com dialogo meio sexy à Barry White: Let’s Walk, cuja percussão orgulharia
Sade. Quando entrar o solo de trompete na mkidtempo Hold On, você começará a
desfilar e jogar o cabelo pra tudo quanto é lado. Podre de chique. Our Love is
Real parece lenta arrasante da Rose Royce, começando.
O único momento jazz mais
denso e só com piano é a clássica ‘Round Midnight, da lavra 194entista de Thelonious
Monk. Lori Williams tem voz treinada o suficiente pra dominar o complexo
fraseado jazz, mas em um álbum de arranjos tão polidos de neo-soul, a canção
fica meio fora de lugar. Mas, longe dizer que compromete. Nada. Recomendo com
fervor.
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