HISTÓRIAS QUE GOSTO DE CONTAR: o caipira perdido.
José
Carlos Sebe Bom Meihy
Já disse que, quando morto, quero ser cremado, mas...
Mas se tivesse uma lápide, ou outra qualquer homenagem feita em material
duradouro, ficaria agradecido com uma inscrição singela dizendo “aqui jaz um
contador de histórias”. Sim, gosto muito de ouvir e de narrar casos. Os fatos
me seduzem mais que as variações filosóficas ou teóricas. Talvez esta seja
minha completa tradução de interiorano, de filho de imigrante que adorava conversar.
Ouvir, contar e principalmente recontar histórias era a mais praticada
experiência de meu pai. Lembro-me que a cada jantar, todos juntos, ouvíamos os
melhores casos. E não presidia nenhum tom crítico negativo. Pelo contrário,
tudo era narrado como epopeias deliciosas e os caipiras viravam, magicamente,
heróis: Ulisses, Zeus, Argos.
Havia tanto encanto que chego a dizer que foram estas
historietas que me fizeram optar pela História como matéria profissional. Mais
do que Weber, Marx, Bauman, foram as lendas refeitas pelo pai que me
enterneceram e conduziram à academia. E essas falas se estenderam a outros
campos da percepção, como a música caipira, as rezas e até o herbário, que cura
falta de sono, dor de estômago, e falhas do amor. A imagem do “caipira picando
fumo” da tela de Almeida Júnior, por exemplo, me encanta pela imponência e pela
autonomia em assumir um tempo dedicado ao que dá prazer. O semblante do
“picador,” seu olhar atento ao fumo de rolo, me faz evocar saudade de
circunstâncias que não se têm mais. Ninguém mais conta casos. Ficamos mudos, e
nos restringimos à leituras de mensagens instantâneas, vivenciando o que de
pior os aparelhos eletrônicos causam. No meu caso, jogar conversa fora,
contando histórias, funciona como antídoto a tudo que temos passado. E luto por
reviver as “lendatórias”, então claras e explícitas em personagens que conheci.
E há uma história que gosto de recordar mais que outra
qualquer e, antes, vale lembrar que a “contação” caipira implica enredos com
começo, meio e fim. Por vital, o sentido trágico ambienta tudo e convida
lagrimas que me rolam fáceis. Basta enunciar isso para se ter clareza do
impacto de canções como “Menino da porteira”, na intepretação memorável de
Sergio Reis. Seria fácil declinar muitas outras “modas de viola”, que se
pronunciam nessa direção, mas há algumas histórias que merecem viso. Repasso
uma que, particularmente, me acomete sempre. Lembro-me, menino ainda,
assombrado com um caso de um tal Seu Dito da Serra. Ele, morador do campo,
teria se afastado, interior adentro, a cada vez que a estrada aberta pelo
governo chegava próximo à sua casa. Interiorando-se mais e mais, mudava,
mudava, mudava, e junto ia toda família com os poucos pertences. Foi indo,
indo, indo, indo mais, até que avistou o mar. Assustado, temendo o fim do
caminho, depois de noites acordado, meditando, resolveu que ia pegar a estrada
e, de volta, descobrir onde ela teria começado. Era como uma vingança, ou raiva
matadora de seu destino de fugitivo do tal progresso
Sem avisar ninguém, numa madrugada, juntou algumas
coisinhas, fez uma trouxa e a amarrou no cajado que levava às costas. E foi sem
se despedir de ninguém. Andou, andou, andou... Viu porteiras novas, as
primeiras vendas, as incipientes casinhas que se avizinhavam, outras mais densas,
mais algumas, até que chegou à cidade. Continuou, mais outra cidade, outra
ainda. Tanto caminhou que o Seu Dito da Serra chegou a outra serra e, perdido
entre tantos começos, nunca mais voltou. Não sabia dos retornos. Perdeu-se para
sempre e sozinho. De tal maneira este “causo” me marcou, que a cada vez que
ouço a expressão “caminho sem volta”, me vem à mente o caso do caipira
desvalido. Por lógico, não me faltam digressões filosóficas e até faço ilações
com o cancioneiro da MPB e me pergunto se a música “Ponteio” não é decorrência
do caso do Seu Dito da Serra: parado no meio do mundo...
O tempo fluiu. Rápido demais para quem contempla o
passado da altura de mais de 75 anos de idade. E quando olho o tempo decorrido,
quando medito sobre tudo que vivi, me lembro com afeto esparramado da
historinha preferida, contada por meu pai. Os olhos verdes e penetrantes dele
se fazem voz e entonação para supor o paradoxo de própria trajetória: sai
também do interior, mas fiz o roteiro inverso, fui em busca de cidade, cada vez
mais, e perdido, desaprendi onde está o lugar de origem. Mas continuo buscando.
Nenhum comentário:
Postar um comentário