A CAMPANHA DA FRATERNIDADE E A VIGILÂNCIA POLÍTICA.
José
Carlos Sebe Bom Meihy
Segundo reza o dito popular, no Brasil o ano começa, de
verdade, depois do Carnaval. As razões para tanto, creio, derivam do excesso de
festas acumuladas desde os novembros, passando por exaustivos dezembros e desembocando
em tórridos janeiros, fevereiros – e por vezes em março. Como se fosse um
divisor entre a ressaca festiva e as responsabilidades cotidianas, as
celebrações momísticas fecham um ciclo consequente, sugerindo recolhimento e
bom senso. Um dos brados retumbantes dos novos tempos é definido pela igreja católica
que anuncia o período da quaresma, inaugurado com a sobriedade cabível na
simbologia da quarta-feira de cinzas. Preside então, um ritual carregado de
significados que nos livrariam de pecados supostamente acumulados até a
terça-feira gorda. Os jejuns apregoados, em particular em relação à metáfora da
carne (de onde pode ter derivado o sentido do carnaval como negação de excessos),
remetem à gravidade do cotidiano inefável. Ainda na esfera da vida cristã, a campanha da fraternidade é propagada
como alerta aos fiéis para conclamas de teores austeros e urgentes. Os
chamamentos deste ano são oportunos e bem objetivos, e estão expressos em duas
indicações. Sob o tema: Fraternidade e
Políticas Públicas, a igreja católica apoia a escolha baseada no lema “serás libertado pelo direito e pela justiça”
(Is 1, 27). Fica, pois, dado o recado magnificente e ajuizado.
Vale notar que a equipe que elegeu os motes agora
assumidos se reuniu para o veredito final divulgado, desde agosto de 2017
(portanto há mais de um ano e meio). O comitê decisório foi composto por grupo
seleto de representantes de diversos segmentos da sociedade, sob o comando da
CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), que reuniu órgãos civis e
governamentais, como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Ministério da
Justiça e do Trabalho. A decisão foi antecedida de muitas reuniões, que deliberaram
sobre sugestões advindas de dioceses e setores mais específicos da sociedade. No
total, para este ano, foram analisadas quase uma centena de assuntos que,
reduzidos a sete, contemplaram aspectos referentes à: violência e mortes no
trânsito; políticas de comunicação de massa; desigualdade e respeito às
diferenças; questões familiares variadas (de aborto a suicídio); acolhimento a
desvalidos como imigrantes, exilados, foragidos políticos. Por sintetizar
vários polos de tensões foi deliberado “fraternidade
e as políticas públicas”. Note-se que a repetição do termo “fraternidade”
foge do sentido pleonástico e ganha foros indicação política e de formas de
participação dos fiéis.
O primeiro impacto dessa escolha trouxe de volta um velho
dilema: deve a igreja, num estado constitucionalmente laico, interferir no
âmbito político amplo? Sabe-se que, desde os chamados anos de chumbo, ou seja, do tempo que nos submeteu à longa noite de
21 anos ditatoriais, foi a liderança católica, entre poucos outros valentes
institutos, a que melhor abrigou setores democráticos e deu vez aos
insatisfeitos. Isso implicou nova leitura dos evangelhos, e na identificação da
face sofredora de um Cristo popular, projetada nos excluídos de todos os tipos.
De certa forma, o reposicionamento da cúpula católica retoma agora as
conclusões do Concilio Vaticano II que, em 1965, apontava a “opção preferencial pelos pobres e desvalidos”,
claramente expressa no documento final, chancelado por Paulo VI.
A sintomática retomada do viés cristão/político, revela
muito da sensibilidade dos dirigentes católicos atuais. A defesa de tantos
prejudicados pelo avanço inequívoco de um capitalismo adjetivado como selvagem,
novamente, torna-se programa, agora ressaltado em dois conceitos bíblicos
pilares: direito e justiça. Tudo isso
acontece em ambiente de falsa contradição entre atitudes de outras denominações
religiosas, também cristãs, mas que adotam estratégias diferentes. A igreja
católica não se apresenta como força legislativa, enquanto muitos neoevangélicos
se representam como tal. Mas, pergunta-se o que isso tem a ver com a católica campanha da fraternidade? E a resposta indica
a vivência de estratagema diverso. Enquanto os dirigentes da igreja romana
tentam conversar com o público por meio das lições dos evangelhos, os neopentecostais
o fazem por vias institucionais, formulando-se em bancadas políticas, que
legitimam suas propostas de cima para baixo. Por certo, ambas se aparelham em
termos da constituição, mas por mediações bem diversas.
A campanha da
fraternidade exalta dois valores direito
e justiça, nesta ordem. As abordagens subjetivas, contudo, pulam do mero enunciado
e convocam definições: mas que direito
e que justiça: direito e justiça dos
homens? É exatamente aí que reside a beleza da escolha católica: sim, direito e
justiça dos homens, mas dos homens todos que devem comungar ideias, torná-las
opinião pública e, assim, legitimarem-se de baixo para cima. Contradizendo o
significado cristão assumido pelos neo-protestantes, não se pretende direito e
justiça legislados longe da anuência e participação direta dos fiéis; leis
feitas por um punhado de políticos que se dizem representantes do povo, sem
lhes devotar autonomia para discussões. Os riscos da temática católica para
esta campanha implicam participações conscientes. Para que não exista apenas
uma campanha de fachada, torna-se importante o debate aberto, dentro e fora das
igrejas, e isso requer que se assuma a valentia democrática de uma igreja que
se abra para discutir questões essenciais para o futuro. A fim de promover direito e justiça, é básico o enfrentamento de assuntos desafiadores como,
por exemplo, o celibato e a pedofilia dentro da própria igreja,
descriminalização do aborto como problema de saúde pública, acatamento de
segundas núpcias. Se a campanha da fraternidade, de fora para dentro, dos fieis
para os políticos, conseguir avançar, alguma resposta será dada. Se não... Que
Deus e os orixás nos ajudem.
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