TRÊS MORTES CARNAVALIZADAS
José Carlos Sebe Bom Meihy
Há tempo venho pensando em transformar em crônicas certas histórias que gosto de contar. Já consegui formatar algumas, e outras se avolumam em vontades incontidas. Como se fosse ponta de lança, no entanto, uma muito recente convocou urgência. Talvez pela bizarrice, talvez pelo quase paradoxal, um velório repontou como tema. Trata-se da morte de um personagem tipicamente carioca, o Alfredo Jacinto Mello – Alfredinho como era conhecido, respeitado e amado por todos. Aos 75 anos, ele era dono de um boteco desses poucos que podem ser chamados de “meu”. O Bip Bip, ou Bip como era conhecido, se tornou um dos locais preferentes de artistas, jornalistas, e boêmios em geral. O próprio dono foi seu fundador, em 1984, e dele dizia que “este estabelecimento foi parido na abertura política”. Aliás, como legítimo espaço democrático, lá se deram alguns dos mais incendiados brados de defesa das liberdades democráticas. Sinceramente, não há, em todo Rio de Janeiro, point que se iguale no gênero “turma fiel”. Tudo no Bip é autêntico e quase inacreditável. Vale começar pelo atendimento. Imagine, em plena Copacabana, um lugar frequentadíssimo, mas sem nenhum garçom, sem comanda, sem cardápio. O pedido é feito diretamente no caixa e cada qual se serve de bebidas no frigobar. A informalidade ganha mais destaque ainda, quando se vê que a maioria das pessoas não se espreme dentro da casa e se esparrama na rua. Aliás, há frequentadores que levam os próprios banquinhos para garantir algum conforto nas longas horas de convívio sempre afinado. As pequenas paredes – acredito que o bar não tenha 20 metros quadrados – são cobertas por fotos de frequentadores famosos, por cartazes políticos (de esquerda, é claro) e por cenas do Botafogo, time do coração do proprietário. Chico Buarque, Beth Carvalho, Milton Nascimento quando vem ao Rio, Neguinho da Beija-flor, figuram entre os assíduos, e lá, na paz, gozam de tranquilidade impensável em outro lugar. Durante anos, Alfredinho manteve rotina de atendimento que contempla segunda e terça, chorinho, marca da casa; os demais dias dedicados à bossa nova e MPB em geral (música estrangeira, só jazz, de vez em quando). Ah! não era difícil ver gente dançando na rua ou ouvir “parabéns pra você”. Não bastasse tanta autonomia, o dono do Bip Bip, o Alfredinho, fez questão de morrer no sábado último, abertura do carnaval. Pode uma coisa destas?! Pode?!?!?!...
Por certo, um dilema se instalou nas almas foliãs, frequentadoras daquele templo de alegria e resistência: e agora?! Confesso que, logo que soube, me veio à cabeça os primeiros versos de Olavo Bilac ao dizer à amada morta “nunca morrer assim num dia assim! de um sol assim!”. Sem dúvida, porém, nos frequentadores, outra perplexidade reinou. Numa rede de comunicação imediata, sem demora alguma, apareceram soluções que se abraçaram em consolo coletivo. E parecia unânime a proposta de manter a festa viva, ou seja, não cancelar os planos da celebração carnavalesca. E mais, resolveram junto à família, que o velório seria no próprio bar. “Nem pensar no Alfredinho em uma capela mortuária, jamais” disse o chefe do grupo do whatsapp. O Bip Bip foi aberto para a visitação do corpo e rolou muita música, velhos sucessos e bebedeira. O “cortejo-folião”, como foi chamado o acompanhamento, saiu em procissão, no domingo, rumo ao cemitério São João Batista, onde foi, finalmente, entoado o samba-canção “carinhoso” de Pixinguinha e João de Barro.
Pois é: ironia cruel da história! Cruel e não menos paródica, pois o Pixinguinha, o tal autor de “carinhoso” também morreu em um dia de carnaval. O caso, aliás, chega a ser intrigante, pois Pixinguinha também morreu aos 75 anos, mas faleceu dentro de uma Igreja, Nossa Senhora da Paz, onde havia ido para apadrinhar uma criança. Era um domingo e a Banda de Ipanema já percorria seu tradicional trajeto quando avisado, na porta do templo, Albino Pinheiro que comandava a passagem da Banda, ao invés de interromper, exatamente na esquina da Igreja, entoou “Carinhoso”, fato que acontece até hoje.
Mas há outra morte fatal em pleno folguedo de Momo. Em 1912, às vésperas do carnaval morria o Barão do Rio Branco. Hermes da Fonseca, então presidente, decretou luto oficial e no ato determinou que os festejos fossem transferidos para o mês de abril. A população em geral, no entanto, não acatou a ordem e manteve suas atividades festivas como se nada de novo houvesse. A insistência do decreto, porém, fez obedecer à ordem decretada, e no dia 6 do mês de abril, realizou-se outro carnaval que, aliás, valeu deliciosa marchinha popular: “Com a morte do Barão/ Tivemos dois Carnavá/ Ai, que bom! Ai, que gostoso! Se morresse o Marechá!”.
Mas, o que se aprende com estas mortes carnavalescas? Sobretudo, ressalta-se o vigor da vontade popular. Nos dois eventos – morte de Alfredinho e Pixinguinha – valeu a ternura do público em geral. Frente ao decreto cívico oficial – da morte do Barão – além da desobediência popular, vibrou a ironia contra o poder estabelecido, militar, que insistia em disciplinar o indisciplinável: a vontade legitimada do povo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário