terça-feira, 30 de abril de 2019

TELINHA QUENTE 358


Roberto Rillo Bíscaro

Não são poucos os debates sobre deficiência enfocando o uso do termo “especial”, para descrever pessoas ou necessidades. Estas são específicas e os deficientes nada “especiais”, são gente capaz de maravilhas e canalhices, como qualquer outra, apenas com características próprias, como não poder ver ou andar. O nome da nova sitcom da Netflix, Special, foi escolhido por seu roteirista e ator principal, Ryan O'Connell, autor do livro que a inspirou, I’m Special and other lies we tell ourselves to get through our twenties (2015). Assim, antes de conclusões precipitadas sobre o “especial” titular, perceba que foi retirado de um contexto bastante irônico, dado por uma pessoa com deficiência.

O’Connell afamou-se na blogosfera/twittersfera por começar a falar sem muitos rodeios sobre como é ser gay com deficiência. Ele tem paralisia cerebral em nível não muito forte, o que lhe permite até estrelar a série, parecendo meio que um nerd, ao estilo do garoto autista de Atypical. Pessoas com deficiência ganham cada vez mais espaço protagônico, desde que possam fazer o motorzinho do drama funcionar e pareçam versões excentricamente fofas de qualquer um. Há que louvar a inclusão na TV, mas sempre é preciso discutir se ela não está criando olhares que só enxerguem a deficiência como peculiaridade proporcionadora de momentos de humor e idiossincrasia. Autistas podem ter acessos de raiva; queimar possíveis cânceres de pele com nitrogênio, nos albinos, não é leve e divertido. Se bem que os albinos ainda não foram lembrados pelos estúdios iluminados e que dificultam a abertura dos olhos. A discussão precisa passar pela real validade da propalada inclusão, ou seja, se as pessoas com deficiência não são apenas mais um objeto de curiosidade divertida, sem repercussão educativa real nas representações.

Isto posto – e é necessário que o seja – resta a série e Special é cativante e inovadora. Ryan O'Connell vira Ryan Hayes, que vive sob a asas da mãe até arrumar estágio não-remunerado num blogue, onde esconde sua paralisia cerebral. Como sofreu acidente de carro, atribui suas restrições e diferenças como sequelas. A ideia é que seria mais facilmente aceito. Nesse sentido, a personagem Ryan desenvolve um arco dramático de sair do armário como pessoa com deficiência, porque como gay isso não precisa acontecer, porque sempre foi assumido. Isso confere uma das originalidades de Special e é feito com competência.

Formalmente, o modelo de sitcom passa por processo de redução no tempo diegético. Cada episódio tem meros 15 minutos e todos os episódios podem ser maratonados em pouco mais de duas horas. Mesmo com essa brevidade, o roteiro consegue tocar em ponto bastante importante: o ressentimento na relação entre mãe e filho. Não há dúvida de que Karen Hayes ama seu menino, mas deixou de viver um monte de coisas por sua causa. Tal constatação é o ápice da temporada de estreia e espera-se que seja desenvolvida na possível jornada posterior. No laconismo da geração Twitter, o roteiro de O’Connell consegue desenhar personalidades e trajetórias às personagens coadjuvantes, especialmente à mãe e sua tentativa de romance com o vizinho Phil. Ou seja, Special é também competente exercício de concisão narrativa.

segunda-feira, 29 de abril de 2019

CAIXA DE MÚSICA 363



Roberto Rillo Bíscaro

Joanna Teters compartilha algo com o barulhento Native Construct: ambos são egressos da Berklee College Of Music. Só que, enquanto estes fazem inovador prog metal, a nova-iorquina sempre amou R’n’B, soul, jazz e reggae. Em carreira-solo ou liderando bandas, Teters tem larga experiência em palcos norte-americanos e europeus e ano passado saiu seu álbum de estreia, Warmer When It Rains. 
Nunca superproduzido, o trabalho funciona quase como um EP, porque são apenas 7 canções e a faixa-título, pouco mais de um minuto de blues sexy. Por que desperdiçar munição assim? Daria canção bem gostosa. Teters percorre o caminho das produções contemporâneas com arzinho de coisa vintage, então o álbum pode apetecer a distintas gerações de fãs de black music.
Ecos de trap estão na sexy abertura de Ride With Me ou no clima latino etéreo de Supreme. Through the Night é soul disco que agradará tanto a jovens revivalistas Nu disco, quanto a fãs de Lisa Stansfield ou remanescentes da primeira metade dos 80’s. A guitarrinha “distante” de Memories Remain empresta tom bem indie à balada soul.  
Midnight traz o clima sexy da onipresente Amy Winehouse, aquela judiazinha inglesa que tanto impactou na música negra do século XXI. Teters está em modo R’n’B, mas os vocais resvalam pro reggaeton ou hip hop, numa combinação envenenada. Joanna também consegue soar pura e cristalina, como na derradeira So Easy to Love, cujo arranjo econômico destaca sua linda voz, num clima bem soul anos 70.
Warmer When It Rains pode ser mais quente, quando chove, mas jamais é frio ou morno. 
Só não ouve quem não, porque está no Bandcamp:

sábado, 27 de abril de 2019

DESAPARECIDOS

“O albino não morre, desaparece”

Scalabriniana brasileira que atua em Moçambique relata as rotas de tráfico humano existentes no país, relacionadas inclusive a crenças populares.

“O albino não morre, desaparece”: este é um dito popular em Moçambique, que explicita a prática ainda atual da comercialização de partes do corpo de pessoas portadoras de albinismo.

A missionária brasileira Ir. Marinês Biasibetti atua no país no combate ao tráfico de seres humanos.

Em entrevista ao Vatican News por ocasião da recente Conferência Internacional em Roma que tratou deste tema, a missionária scalabriniana relata as rotas existentes em Moçambique, relacionadas seja à migração, seja a crenças populares:

sexta-feira, 26 de abril de 2019

QUATI ALBINO

Moradores encontram quati albino em meio à outras espécies em fazenda. Para vê-lo, acesse o link:

quinta-feira, 25 de abril de 2019

TELONA QUENTE 285

Roberto Rillo Bíscaro

Ao que tudo indica, assistimos ao nascimento de franquia de terrir, mistura de horror com comédia. O sucesso de A Morte Te Dá Parabéns (2017) determinou continuação, cujo título no Brasil só foi acréscimo do 2 ao nome e chegou aos cines, em fevereiro.
Os minutos iniciais levam a crer que a armadilha temporal na qual caiu Tree Gelbman desta feita pegou Ryan, personagem de terceira importância no filme um. Como ele é “nipo”-americano deve ter sido mais inclusivo colocá-lo na berlinda por alguns minutos e ele realmente é simpático. Mas, o cetro logo volta às mãos da competente atriz Jessica Rothe: Ryan e seus amigos nerds experimentavam com física quântica e criam loop temporal, que volta a engolir Tree. Nesta fração da franquia, há complicador: além de morrer todo dia e ter que descobrir seu assassino, Tree é transportada também a outra dimensão, onde sua mãe está viva. Daí, há a dura decisão de escolher entre voltar pro seu tempo e dimensão sem a mãe ou ficar na emprestada, com a mama, mas vivendo vida postiça.
A Morte Te Dá Parabéns 2 meio que substitui a fórmula Pânico + Feitiço do Tempo, por Feitiço do Tempo + De Volta Ao Futuro. Em sua maior parte, esperto e atraente, o filme aboliu o terror. Ainda existe o serial killer com máscara de bebê, mas não provoca suspense e nem gera gore. Happy Death Day 2U é mais uma fantasia cômica teen com confeitos de suspense sci fi.
Enfim, uma salada de subgêneros, que funciona em parte. A sequência dos suicídios de Tree é muito bem-bolada. Ela decide que se terá que morrer diariamente de novo, que seja por escolha própria e não à mercê de serial killer. Empoderada! Porém, há momentos sub-aproveitados, como colocar dois Ryans de dimensões distintas numa mesma e não explorar ou explicar por que (porque a caucasiana loira tem que ser a final girl!) e uma sequência dolorosamente desnecessária e estúpida de humor abaixo de pastelão, envolvendo suposta intercambista francesa cega.
Ao contrário da prestação primeira, que podia agradar galerinha teen e alguns fãs mais outonais de slasher films, A Morte Te Dá Parabéns 2 escolheu pender pro primeiro grupo. Fãs de horror “sério”, sem muito senso de humor, mantenham distância.

terça-feira, 23 de abril de 2019

TELINHA QUENTE 357


Roberto Rillo Bíscaro

Em 2010, um líder do Hamas foi assassinado num hotel em Dubai, num crime logo associado ao Mossad, serviço-secreto israelense. O que mais capturou a imaginação, porém, foi o uso de dezenas de passaportes clonados de gente de verdade, da Europa e da Austrália, que, dum segundo pro outro, se viu implicada numa intricada trama engendrada a milhares de quilômetros de seu cotidiano.
Assim, se você tiver a sorte de cruzar com os 8 capítulos de Kfulim (2015) – internacionalmente conhecida como False Flag – cuidado antes de proferir o clássico, “só em séries mesmo...”.
Numa bela e calma manhã, em alguns subúrbios classe-média de Israel, 5 “comuns” veem as páginas de rosto de seus passaportes estampados nas telas dos principais canais de notícia, em escala global. A suspeita: terem sido autores do ousado sequestro dum ministro iraniano num hotel moscovita. Sinta o calibre do problema: árabes e judeus e russos. Pura espoleta atômica.
No começo, não há aparente ligação entre os suspeitos ou sequer cabimento nas alegações. Um químico pai de família; uma tutora bilíngue de inglês, com cara de sonsa; uma contadora prestes a se casar; uma garota que adora o escândalo, porque lhe proporciona seu momento Kardashian; uma espécie de Kadu Moliterno judeu. O que teriam em comum? Mas, aos poucos descobrimos alguns elos, esqueletos nos armários e pior, por que todos estavam fora de Israel no dia do sequestro, inclusive até na capital russa?
Pátria de Fauda, Hostages (ambas na Netflix) e do original de Homeland (preciso ver!), Israel tem sólida reputação quando se trata de thrillers. False Flag não nega a estirpe. O primeiro capítulo é daqueles que poderia constar em qualquer manual de roteiro de série de suspense: apresenta as personagens, nos interessamos por elas e os acontecimentos nos injetam mil dúvidas, que nos fisgam pros próximos episódios, sempre culminantes em cliffhanger reviravoltante ou revelatório. 
Com algumas personagens que descrevem arcos de mudança, como a inicialmente festeira Asia, False Flag não escapa dalguns clichês, como alguém possuir um melhor amigo hacker, disposto a se colocar em perigo de segurança nacional por você.
Qual série não os tem? O que importa é que False Flag entretém e eletriza.

segunda-feira, 22 de abril de 2019

CAIXA DE MÚSICA 362



Roberto Rillo Bíscaro

Uma das funções do underground é fornecer tendências e estilos, que se tornarão modinha mainstream ou padrões hegemônicos duma época. Geralmente liquefeito e acessibilizado pra se parecer um pouco com o já conhecido, apenas com toques de “revolução”, a nova convenção de gueto é percebida por capitães da indústria cultural ou olheiros como Bowie, Madonna ou Gaga e ressignificada pra consumo maciço.
Grosso modo, as paradas de sucesso britânicas depois de Pump Up The Volume eram um planeta bem diferenciado daquele da primeira metade oitentista. Duran Duran, Ultravox e Culture Club já eram som de irmão mais velho. Moçadinha teen queria diferença, e o fervilhante cenário acid house forneceu elementos pra que o som predominante mudasse, mas não tanto.
No fim do decênio, S’Express, Coldcut e Bomb The Bass tiveram seus 15 minutos de holofote forte, todos oriundos da cena da dance ácida do Reino Unido. Claro que o Top Ten era dominado pelo pop bem mais fácil de Stock, Aitkens e Waterman e que tio Phil Collins e mano mais velho Morrissey ainda davam as caras nas 10 Mais, mas a novidade cultural da garotada era a acid house e ela rendeu bastante grana. Não à toa, o álbum de 1989 da New Order tinha influências de acid house, ou seja, o quarteto de Manchester (Madchester, como apelidada então) agora se adaptava a tendência ao invés de ditá-las.   
Para galgar o Top Tem, via de regra era necessário adaptar-se ao padrão mais “ordeiro”, mesmo que a aparência não fosse esta, aliás, seria melhor que não fosse; rebeldia de butique sempre rendeu dividendos. Sons mais inovadores, com sonoridades “estranhas” permaneciam na parada independente, como o Colourbox. Isso não desmerece o sucesso comercial e o afirmado não se pretende regra pétrea. Muita coisa ótima chegou às paradas. Pra ter boa qualidade não precisa ser inovador ou inacessível.
Em 1988, um álbum-cometa flamejou no firmamento pop britânico e a artista voltou pro espaço sideral sem deixar rastros. Convém mirar nosso telescópio pra Yazz, que soava nova em relação ao Eurythmics, mas visualmente evocava Annie Lennox. Esse revival obviamente passa pelo fato deste blogueiro ter tido o vinil e tentado aderir à sonoridade acid no par de anos finais dos 80’s, mas também, porque a acid house voltou forte, em 2018. Não precisa ir muito mais longe do que a faixa de abertura de Mutant City Acid, do Posthuman pra perceber o teclado “enrolado” da Roland e as linhas de baixo sintetizadas. 


Filha dum jamaicano e duma inglesa, Yazz badalava na cena musical clubber e de moda, desde a primeira metade dos 80’s. Como a acid house se deu melhor nos singles do que nos álbuns, Yazz arrasou com quatro compactos entre 88 e 89. Wanted - álbum lançado em novembro de 1988 – de modo algum se saiu mal nas paradas, atingindo o terceiro lugar, mas não há como negar que o pouco de lembrança que a londrina deixou virá do single The Only Way Is Up.
A novena de faixas em Wanted é prova cabal da antropofagia pop, que destrincha elementos do underground, recombinando-os e familiarizando-os pra gerar algo que soa novo, mas é essencialmente o mesmo de sempre. Como não perceber que a percussão de bongôs psicodelizados de Where Has All The Love Gone, além do teclado “retorcido” tão característico da acid house, são novidade em comparação à sintetização robótica extrema da geração pop anterior? Perceba, entretanto, as cordas tão disco music, que recheiam a canção.
Wanted é cheio dessa hibridização. Got To Share tem metais jazz em um mundo afro. Something Special é totalmente acid jazz popificado: tem contrabaixo obeso, pianinho jazzy, quase que Yazz faz scat singing. Na verdade, há arremedo de um, no final. Fine Time é midtempo dub, atinente com a influência do reggae na Grã-Bretanha do punk adiante. Wanted On The Floor é funkão setentista, mas acidificado com scratches e samples de “hey DJ, turn it up”!,  além do Roland psicodelilzado.
E pra confirmar que Wanted era pra brincadeira dançante metida a hipster, basta (re)ouvir os single-locomotivas The Only Way Is Up e Stand Up For Your Love Rights. São pura disco music “enlouquecidas” com barulhinhos acid. Stand Up.... tem até sirene de polícia, como as que tinham nos discos da Hippopotamu’s, no finalzinho dos 70’s. Que isso não deponha contra; são infecciosamente dançáveis e deliciosas. Soavam enrugadas meses após o lançamento, mas em nosso mundo pós trocentos revivals disco e acid house, dá pra se jogar com vontade
Os “frios” sintetizadores do Human League & Cia preparavam-se pra virar peça de museu. O “consolo” é que Yazz virou uma ainda em 1989. Os ravers raiz de então, devem ter achado Wanted apropriação cultural do underground pelo establishment. Que seja, mas o álbum merecia ser resgatado do limbo; é pop bem gostoso.
Só não recomendo a exagerada reedição tripla da Cherry Red, de 2016. Quem precisa de 2 CDs só de remixes de 4 canções?

quinta-feira, 18 de abril de 2019

TELONA QUENTE 284


Roberto Rillo Bíscaro

Eilean Shona é uma ilha escocesa, que já teve boa população, mas que, em meados do século XIX, passou por emigração maciça e ficou desabitada. Lendas locais atribuíram a deserção a um assassinato e posterior maldição sobre o local, mas o mais plausível é que a fome tenha afugentado os ilhéus. Alugada nos 1920’s, para J. M. Barrie, foi ali que o autor adaptou seu clássico Peter Pan para sua estreia cinematográfica.
Ano passado, Eilean Shona inspirou o diretor Matthew Butler Hart, que escreveu o roteiro de The Isle, com sua esposa Tori Butler Hart, também atriz do filme. Três náufragos vão parar em uma ilha que sequer consta de seus mapas. Habitada por apenas quatro pessoas, não demora pra perceberem que algo estranho ocorre lá.
Filmado em Eilean Shona, The Isle agradará no quesito cinematografia. Quem curte cenários naturais meio desolados, amará. Em ritmo e tom, o filme inspira-se no pequeno ciclo de horror rural britânico dos anos 1970, cujo exemplar mais conhecido é O Homem de Palha (1973). Preferindo a suspense e a sensação de algo sobrenatural à violência e gore, a produção é repleta de névoa, sussurros e discretas sugestões demoníacas. Flashbacks, cada vez mais clarificadores, nos revelam os antecedentes dessa história que mistura folclore rural, com mitologia grega. 
The Isle não preza pela originalidade e o roteiro não enrubesce na exposição meio pesada: apesar de restar apenas um quarteto na ilha, um deles mantém minucioso diário e uma enciclopédia, pro marinheiro que gosta de ler, aprender logo na primeira noite quem foi Perséfone.
Nem de longe, a produção chega ao patamar de excelência de suas inspirações, porque os fios da trama não provocam o curto circuito surpreendente pretendido. A referência às sereias, por exemplo, jamais se integra ao bom drama pessoal. Mas, o elenco é eficiente e o filme distrai.

terça-feira, 16 de abril de 2019

TELINHA QUENTE 356


Roberto Rillo Bíscaro

O mundo árabe é composto por mais de duas dezenas de países, populados por centenas de milhões, com vivências que vão do cosmopolitismo afluente e high-tech de Dubai, ao isolamento faminto do Sudão. São experiências radicalmente distintas e ainda assim, de forma geral, a percepção que temos dos países muçulmanos é de celeiro de terroristas, cegados pelo fundamentalismo religioso e mergulhados numa sociedade tão rígida, que não deve poder acontecer nada, senão o sujeito toma chibatada. Não comparamos Paraguai com Dinamarca, mas cremos que “turco” é tudo a mesma coisa (africano também, “japonês” também....).
A adição dos dezoito episódios da primeira temporada de Justiça (2017) ao catálogo da Netflix é bem-vinda lufada de vento quente do deserto dos Emirados Árabes Unidos. Ambientada no privilegiado mundo da classe alta de Abu Dhabi, o show é drama de tribunal, que contou com a colaboração do departamento de justiça do emirado, que abriu seus arquivos de casos pros produtores basearem as histórias. Nomes importantes da TV norte-americana estão por trás da criação da série, cuja produção é suntuosa.
Há fio condutor e unificador que é a filha dum famoso advogado, que retorna dos EUA, após se formar em direito. Ao invés de se juntar à firma do pai, Farah segue seu caminho. Isso tem bem pouco impacto; o que se destacam em Justiça são os casos. Poder-se-ia alegar que a família de Farah é liberal e boazinha demais com os filhos, que fazem o que bem entendem. Mas, daí, teríamos que lembrar que se acreditarmos que a sociedade norte-americana é igual àquela que vemos em suas séries, então, tratar-se-ia de lócus ideal, integrado racial e sexualmente. Qualquer seriezinha de terror hoje tem gente de toda cor e gênero convivendo de boa. E sabemos que está longe de refletir o real.
O fascínio de Justiça vem dos casos e do olhar que nos permite em cultura tão nossa desconhecida. Sem júri, os casos são decididos por um juiz e envolvem abuso de menores, tráfico de droga, bullying, malandragem da grossa, enfim, Abu Dhabi enfrenta muitos dos mesmos problemas que nós; Alá não cria um oásis tão rigidamente controlado e a ponto de não haver transgressão. Só que isso acontece numa sociedade poligâmica, por exemplo, então é muito diferente pra nós ocidentais ouvirmos que o acusado X se divorciou da segunda esposa, mas essa é concomitante a uma primeira e não subsequente, como estamos acostumados.
Acostumados a representações de árabes cobertos até os olhos (as mulheres, especialmente), atiça a curiosidade de pesquisar, quando se vê jovens com camiseta do Batman ou mulheres sem cobrir a cabeça, mesmo em público. Não todas e nem em todas as situações, mas fica claro que há muito mais sutileza nos códigos do que se supõe.
Obviamente, não podemos tomar o apresentado como modo fiel de como vivem e pensam os cidadãos de Abu Dhabi, senão incorreríamos no erro de imaginar que os EUA são paraíso integracionista à Will and Grace. Mas, como exposição de fatias de vidas e casos de direito, Justiça é muito eficiente e absorvente.

No final do século XVIII, pouquíssima gente podia pagar advogado de defesa, quando seus casos iam pro Old Bailey, o Central Criminal Court. E mesmo quem podia, se via em maus lençóis, caso fosse o acusado. Não havia presunção de inocência, as testemunhas eram chamadas apenas pra declarar sobre o caráter dos envolvidos e não havia todas as acrobacias discursivas, como as conhecemos hoje, através de tantos filmes e séries de tribunal.
Um dos genitores do moderno sistema legal anglo-norte-americano foi William Garrow (1760-1840), agressivo advogado, que ficou décadas esquecido, até ser resgatado no final do século passado. Entre 2009-11, a BBC produziu três curtas temporadas de Garrow’s Law, perfazendo dúzia de episódios.
A cada episódio, Garrow e seu mentor John Southouse defendem um oprimido, que não teria a menor chance de defesa, não fosse pelos dois advogados precursores e criadores de precedentes legais. A tarefa da defesa e das piruetas discursivas sempre recaía em Garrow, para achar soluções possíveis pros casos, retirados dos arquivos do Old Bailey da época. Não que de verdade ele defendeu todos os casos apresentados, mas isso não importa.
Garrow’s Law agrada em cheio quem aprecia dramas legais ou de tribunais, os court dramas, em inglês. Pro espectador contemporâneo, alguns casos e situações são tão alienígenas, quanto para os ocidentais, alguns casos em Justiça. Por outro lado, a já multicultural e metropolitana Londres setecentista enfrentava crimes e transgressões, do mesmo tipo que reclamamos hoje e alguns insistem inexistir antigamente.
A fim de conferir aspecto de seriado, os roteiristas desenvolvem um arco representando o envolvimento de Garrow com Lady Sarah Hill, que foi sua parceira na vida real, mas cuja disputa pela guarda do filho não aconteceu. Embora resolvida de modo bem novelão, esse é o naco menos carnudo. Garrow’s Law vale pelos casos apresentados e seria até mais eficiente, se o formato fosse a de caso da semana.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

CAIXA DE MÚSICA 361


Roberto Rillo Bíscaro

Não foi por acaso que Bárbara Eugênia escolheu lançar seu quarto álbum precisamente no Dia Internacional da Mulher. Empoderada, a carioca coproduziu-o e batizou-o de Tuda e cercou-se de gente daqui e de lá fora, para acompanhá-la na desenvolta dezena de faixas, que perpassam e aglutinam estilos e épocas.

A curta abertura, cantada com o Bloco Pagu, parece ponto de candomblé ou símile e dá impressão de que se trata de álbum “raiz”, ou como se queira chamar a música de cariz mais tradicional. Em Saudação, Bárbara agradece aos seres da mata e do mar e tudo o que vem dos quatro elementos: água, ar, fogo e terra. Telúrico e acústico, cheio de chocalhos e tambores afro.

Mas, esse é só o início de um álbum eminentemente pop, que, como tal, canibaliza o que pode e cospe de forma acessível e grudenta. Logo após Saudação, vem Perdi, cuja introdução de piano logo cede lugar à marcada pancada da bateria eletrônica e teclados bem estilo anos 80, década que informa a faixa mais grudenta de Tuda. Bagunça convida para a dança e tem até solo do instrumento-símbolo dos 80’s: o saxofone. Irremediável e imediatamente viciante, com letra que fala até de disco da Adele e tem a participação de Zeca Baleiro.

Tuda não se restringe a revival macaqueado dos anos 80. Perfeitamente Imperfeita é ijexá pop, com backing de mocinhos fazendo papapa. Sol de Verano tem clima de pop 70’s, porque é reinterpretação de uma canção de 1983, da anglo-hispânica Jeanette, cantante das clássicas Soy Rebelde e Porque Te Vas. Os efeitos, alguns hoje datados e “bregas”, são rasgados por mal-comportada guitarra roquenta. O clima de irmandade hispânica segue com Por La Luz Y Por Tierra, folk argentino, com o grupo Onda Vaga. Também dá vontade de bailar, mas num clima mais chacarero, flaco! Outra que dá vontade de baixar até o chão é Confusão, espécie de synth-carimbó, presente para o mundo da cena tecnobrega do norte. Eugênia dueta com um dos expoentes do subgênero, Felipe Cordeiro.

Querência psicodelilza um bocadinho, meio que misturando Caribe com Oriente Médio/norte africano e dance-rock. Inventiva e mutante, mas, ainda acessível. Essa faixa tem a companhia de Iara Rennó, que, ano passado, lançou delicioso álbum infantil chamado Iaiá e os Erês.

O aspecto de maleabilidade plástica de canções como Querência, faz de Tuda, pop bem pouco óbvio. Esse aspecto camaleônico intrafaixa também se destaca em Apaixonada Feito Gente Não, que vai de solo repetitivo à erudito contemporâneo ao baticum eletroacústico pós-tudo do fim da faixa.

Com produção que jamais exagera – e isso seria fácil num álbum com essa proposta de mistureba pop – Tuda é tudibom.

sexta-feira, 12 de abril de 2019

VOGUE ALBINA

Pela primeira vez, Vogue tem modelo albina na capa


Modelo e ativista sul-africana Thando Hopa é a primeira mulher albina a aparecer em uma capa da revista


A modelo e ativista sul-africana Thando Hopa é a primeira mulher albina a aparecer em uma capa da revista Vogue. Ela estampa a edição de abril da versão de Portugal da publicação com o título “African Motherland”.

Em um post no Facebook, a modelo explica como ela sempre faou com amigos o quanto seria “adorável ver” uma modelo com albinismo enfeitando a capa de uma revista Vogue, mas nunca imaginou que seria ela.

Thando foi considerada uma das mulheres mais influentes de 2018, e diz o quanto sonha com o fim dos estigmas relacionados ao albinismo: “Sou sentimental, vejo progresso e faço parte dessa história progressista. Cheguei a um lugar na minha carreira onde aprecio cada parte do meu corpo e sei que, onde quer que eu vá, minha existência, do jeito que é, sempre e sempre será o suficiente”.

Pouco tempo da capa ser postada, a reação do público era particularmente positiva e parabenizando a iniciativa da revista em escolher Thando.

As imagens para a Vogue foram feitas pelo fotógrafo Rhys Frampton.

Eis a reportagem.


Thando Hopa: "Enquanto mulher negra, africana e pessoa com albinismo lutei toda a minha vida pelo empoderamento"



É negra. É africana. É mulher. E tem albinismo. Thando Hopa (e não hope, num trocadilho feliz com a palavra esperança) podia ser descrita apenas com estas características, não fosse o sangue que lhe corre nas veias, de um ativismo ensurdecedor. Tão ensurdecedor que ser procuradora e modelo não foi suficiente, e é nas palavras que se expressa enquanto ser pensante que luta contra todos os preconceitos do mundo. Às vezes meia palavra basta, mas Thando Hopa tem tanto para dizer, que é bom ouvi-las todas.

O que é queria ser em miúda?
Durante muito tempo queria ser um milhão de coisas, mas acabei por ficar muito focada em ser atriz, curiosamente. Queria muito representar, mas o meu pai tinha uma filosofia diferente, queria que eu fosse contabilista. Portanto Direito acabou por ser o nosso meio-termo.

Ia perguntar-lhe se o Direito tinha sido a sua forma de lutar contra as injustiças do mundo, mas sendo assim pode dizer-se que foi por acaso.
[Risos] Não te consigo mentir. Quando fui para Direito não sabia no que me estava a meter, para ser honesta. Mas acho que o impacto do curso foi que começou a esculpir a minha psicologia e a minha filosofia política. Só depois é que decidi ser procuradora e aí sim, foi uma decisão vocacionada puramente pelo sentido de justiça.

Lembra-se quando foi a primeira vez que os seus pais falaram consigo sobre albinismo?
Não me lembro de alguma vez o fazer formalmente com os meus pais. Ou com alguém na minha família. Tudo foi muito gradual. Quando fui para a escola a minha mãe nunca me disse “olha, tu és diferente das outras crianças. Porque eu cresci numa sociedade pigmentada. Cresci com pessoas de raízes indianas e pessoas negras. Eu cresci a ser a única pessoa que tinha uma cor branca na pele. Mas os meus pais nunca tiveram essa conversa oficial comigo. O que a minha mãe sempre fez, e eu acho que era uma  forma de ela me ensinar sobre albinismo sem falar sobre isso, foi ensinar-me coisas práticas, como as questões relacionadas com a minha visão, e o meu pai jogava à bola comigo para me ajudar com a minha perceção da profundidade de campo, ela ensinava-me sobre pele e garantia que eu tinha sempre protetor solar. Ou seja, eu percebia as implicações práticas da minha pele, mas não as implicações sociais e culturais. (...) Quando és criança não és diferente, és só uma criança. Quando muito podes ser uma rapariga, mas mesmo a questão do género não é muito preponderante quando tens quatro ou cinco anos. Era como o albinismo. Eu não tinha albinismo. Nem sequer era negra, porque não conhecia o conceito de raça quando era uma criança. A tua mente só começa a perceber à medida que vais crescendo e a sociedade começa a ensinar-te que és diferente. Acho que só percebi verdadeiramente sobre ter albinismo aí pelo secundário.

Quando foi a primeira vez que se sentiu bonita?
É difícil dizer-te, porque de facto é um processo. Lembro-me de um dia ter chegado da escola, ter ido ter com o meu pai a chorar e dizer que não queria mais ser assim. Porque quando és adolescente e a tua feminilidade começa a surgir, a tua noção de atração, de Beleza, surge pela primeira vez. Começas a internalizar as imagens que vês nos media, a tua cultura, quem as pessoas consideram bonitas, e se isso não fores tu... Bem, fui ter com o meu pai a chorar, isto com uns 12 anos e ele, que honestamente criou-me da melhor forma que um homem consegue, disse-me que eu era a rapariga mais bonita que já tinha visto. E eu continuei a chorar. Hoje sei que foi um momento decisivo do processo de perceber que eu, enquanto mulher, sou o suficiente. E depois o tempo passou e eu comecei a pintar as sobrancelhas, as pestanas... [risos]

Um momento de experimentação?
Sabes que mais? Adorava dizer-te que sim, que foi sobre experimentação, mas não foi. Foi um momento na minha vida em que eu senti que não queria ter mais albinismo. As sobrancelhas e pestanas claras, o cabelo loiro e encaracolado faziam-me sentir peculiar. Por isso comecei a mudar o meu aspeto para me assemelhar mais a todas as outras pessoas. E quando fiz isso, comecei a parecer menos que tinha albinismo.


E como se sentiu?
Confiante. Superconfiante. E comecei a ter validação dos meus companheiros, como se tivesse finalmente encontrado a fórmula perfeita para ser bonita. E depois o tempo passou, tornei-me procuradora, e nesse momento achei que estava muito confiante com a minha imagem. Até que uma coisa aconteceu que mudou tudo. Foi uma sessão fotográfica para a Forbes em que me pediram para fazer um look natural. E eu fiquei aterrada. Eu estava aterrorizada por ter de mostrar as minhas sobrancelhas claras, as minhas pestanas. Estava com medo de parecer tão diferente outra vez, porque no tempo em que me senti diferente não me senti bonita. E então pensei: ‘Se eu tenho medo de me mostrar como sou, como é que algum dia eu posso encarar isto como representação? Como é que eu posso dizer que é válido ser assim, se eu não estou ok com ser assim? Foi aí que a minha viagem pela Beleza começou. Percebendo que eu sou suficiente. Eu sou suficiente. Eu sou suficiente. Ficou um mantra. E só aí transpus parte da minha confiança para coragem, porque inicialmente eu era muito confiante, mas honestamente era-o porque estava a ter validação. Precisei de chegar àquele ponto em que estava contente comigo mesma, quer tivesse validação ou não.

O que é Beleza para si, hoje?
Sentires-te suficiente. Sentires que naquele dado momento és o suficiente. Em grego, a origem do significado da palavra beleza é “estar certa”, ou seja, o que tu és nesse momento é perfeito e suficiente. É abraçares quem tu és: a tua idade, o teu género, tudo, e pensar que tudo é bonito e suficiente.

Porque é que esta causa é tão importante para si?
Para mim enquanto pessoa, além de mulher, a questão do poder sobre o corpo de alguém é muito importante. É um direit fundamental e as pessoas perceberem isso é muito importante. Portanto qualquer coisa que seja uma transgressão disso não aguento. Seja assédio sexual, violação, exploração sexual, algo que as modelos estão mais propensas a ser expostas... Acho que, enquanto mulher negra, africana e pessoa com albinismo, lutei toda a minha vida pelo empoderamento. E tudo o que seja uma transgressão disso é na verdade o berço do meu ativismo, é a razão pela qual eu sou ativista. Porque as pessoas referem-se a ser ativista como uma profissão, mas não, é uma característica da personalidade. Vai seguir-te para onde quer que vás. Podes ser modelo, podes ser construtor, podes ser advogado, um grande CEO. Ativismo é uma característica e manifesta-se em qualquer profissão.

Sente que ter albinismo fomentou o seu papel enquanto ativista?
Sem dúvida. Muitas vezes quando estou a falar refiro-me ao meu albinismo porque estar neste corpo ajudou-me a compreender muitas coisas. Ajudou-me a perceber a importância das ligações sociais e de nos ligarmos uns aos outros. Ajudou-me a aprender como é que nós enquanto sociedade lidamos com a diferença. Porque eu experienciei diferentes tipos de preconceito. Enquanto mulher. Enquanto mulher negra. Enquanto pessoa com albinismo. Enquanto mulher africana. Especialmente no panorama europeu, percebo a forma como as perguntas são colocadas. Há uma certa perceção sobre África que não é necessariamente correta, ou que está mal representada [suspiro]. Mas acho que estar neste corpo me ensinou muito.


Como é a sua postura em relação ao preconceito?
O preconceito é contextual e multifacetado. Dependendo do teu contexto podes ter preconceito, não ter preconceito ou ter muito preconceito. Mas não é fácil, porque por exemplo ainda há muita iliteracia no que respeita ao albinismo, e se então houver uma falta de explicação científica... a explicação tende a mover-se ainda mais para o campo supernatural [risos]. Como “tu és assim porque és especial ou tens poderes especiais”.
Como se sente em relação à palavra especial?
Não gosto. Porque não acho que seja positiva. Ser separada da tua humanidade é um problema, quer as pessoas te chamem animal ou um tipo de anjo, o que seja, qualquer coisa que te tire humanidade.

Ainda sobre preconceitos. Tem sido muito aberta sobre o problema nos media e sobre a subjugação às expressões modelo albina faz isto, modelo albina faz aquilo. Sente-se ainda vista dessa forma?
Acho que está a mudar no que toca a mim, Thando Hopa. Não sei sobre a próxima jovem com albinismo que entre no meio. Espero mesmo que todas as lutas e desafios por que passei... ela não tenha de passar pelo mesmo. Porque eu fui tão vocal quanto possível. Mas se eu ainda experiencio preconceito? Claro que sim [risos]. Demorou muito tempo até que certos espaços me aceitassem da forma que sou e que não estivessem desconfortáveis com o look. Oh, vais desaparecer em frente à câmara assim.

Como é que se ouve – e responde – a uma coisa dessas?
Encontrando uma realidade partilhada. Lembro-me de uma vez estar com uma mulher que era plus-size model, e nem sei se concordo com este termo, mas enfim, e ela disse-me: “Não acabaste a maquilhagem, vais desaparecer em frente à câmara, vamos só escurecer as sobrancelhas. E eu disse-lhe: Sabes quando põem uma rapariga grande num espartilho para a fazer parecer mais pequena? Dizem que é pela diversidade, mas é mais vamos deixar-te desconfortável para teres o look com o qual nós estamos confortáveis na nossa cultura”. E ela disse: “Sabes que mais? Eu acabei de fazer isso contigo.” É esta realidade partilhada, este terreno comum, o mecanismo que eu tento usar. Empatia. Tento usar empatia.

Nunca como hoje falámos tanto sobre representação. Está esperançosa no futuro ou sente que ainda vivemos sob muitos rótulos e estereótipos?
Sobre albinismo, para ser honesta, não vejo qualquer mudança no cinema ou na televisão. Na Moda, pelo contrário, em termos de representação tem sido cada vez mais diversa.

Como é que vê a representação nos media?
As minhas experiências fizeram-me chegar até aqui e concluir que, apesar de existir representação, ela pode resultar em má representação ou representação condicional, ou seja, “representamos-te se tu fizeres isto”, sabes? E às vezes a representação é através de um retrato indesejado. Eu passo muito por isso porque quando a minha carreira de modelo cresceu, o interesse pela carreira enquanto atriz também. E as pessoas começaram a dar-me excertos de personagens. Mas todas elas têm padrões muito semelhantes. Ou é esta personagem maléfica [risos], ou tem que ver com assassinatos muti, rituais associados ao albinismo em África. E todas, todas as personagens que recebi, tinham esta desconexão social (...). Nunca era só uma pessoa numa comunidade, a fazer coisas humanas normais, a apaixonar-se, a ir à escola, o que fosse, uma história humana. Todas estas histórias eram separadas da humanidade e houve um tempo em que eu era muito afetada por isso. Estava presa a um estereótipo. E depois tive de escolher entre má representação, falta de representação ou representação condicional num retrato não desejado. Nunca tive a opção de uma representação inclusiva, percebes? Uma personagem humana e relacionável.

Tem algum receio de que esta ideia de inclusão e diversidade seja entendida como uma tendência?
Escrevi sobre isto há um tempo, não acho que os corpos humanos devam nunca ser apelidados como tendências. Tenho um problema grave com pessoas que dizem que albinismo é uma tendência ou que vitiligo é uma tendência. Ou pessoas que dizem é tão cool ser negro agora” [risos]. Não sou capaz de lidar com o que ouço. Os corpos humanos não são descartáveis. Tem sido um dos meus problemas na forma como as pessoas olham para certos corpos na Moda. No que toca à inclusão, não acho que seja uma tendência. O diálogo sim, pode ser uma tendência.

Como é que nós, mundo, podemos fazer melhor?
Com consultoria. Priorizando consultoria se queres fazer algo sobre alguma coisa em que não tens experiência. Eu própria tenho de consultar pessoas se vou a Portugal e se tenho de fazer alguma coisa sobre Portugal, certo? Não posso chegar, ter a minha perceção do que é Portugal, como as pessoas portuguesas falam, como é a cultura, simplesmente porque li sobre isso nalgum lado. Preciso de fazer consultoria. É um passo essencial para progredir verdadeiramente com diversidade inclusiva. Tens de estar aberto a pedir ajuda.
Eu nunca senti que fosse uma questão de raça, sabes? Mesmo sendo um elenco exclusivamente negro. Acho que foi uma mensagem para mim sobre representação. Inicialmente a narrativa implicava muita obrigação: Tens de fazer isto porque é a coisa certa a fazer. Sinto que hoje as pessoas estão  a começar a perceber que a diversidade é todo um mundo de oportunidade. Que temos acesso a uma cultura e imaginação diferentes, que estamos perante uma diversidade cognitiva e que vemos como é possível contar histórias de uma maneira mais abrangente e inclusiva. E acho que hoje as pessoas pensam: Espera, como é que há toda esta riqueza a que nunca acedemos, porque estávamos a monopolizar as coisas com algo tão artificial como a raça ou o género? Acho que as pessoas estão a começar a ver o benefício genuíno da diversidade.

Li que foi a Adwoa Aboah a fadamadrinha de tudo.
Eu não fazia ideia de que tinha sido ela a enviar a minha fotografia! Quando a conheci foi de forma muito casual, apresentámo-nos apenas. E eu nunca tinha conseguido perceber como é eu tinha ido parar ao Pirelli. Tens de perceber que isto era honestamente inimaginável, no sentido mais lato da palavra. Sou uma mulher da África do Sul, por isso só geograficamente já não faz sentido. E ainda que tenhamos feito progressos na cultura pop no que toca à representação, uma coisa desta dimensão... Mas bem, descobri que quatro anos antes a Aboah tinha mostrado a minha fotografia ao Tim Walker [fotógrafo do Calendário Pirelli em 2018]. E disseram-me: “Vamos fotografar para Vogue.” Mas eu era procuradora na altura, a trabalhar em casos de crimes sexuais e, vou ser muito sincera contigo, eu não ia abandonar para um editorial da Vogue de três dias e deixar uma vítima de violação sem alguém para a representar. Nas minhas prioridades, isto não era sequer discutível. Foi só aquando do lançamento que conversei com o Tim [Walker], que, já agora, é uma das pessoas mais fascinantes que eu já conheci na vida, e perguntei-lhe: “Tim, como é que me foste encontrar?” E foi aí que ele me disse que tinha sido a Adwoa a enviar-lhe a minha fotografia. Muitas vezes as pessoas procuram reconhecimento, e ela nunca o quis, o que foi tão surpreendente. Ela fez algo por mim sem esperar qualquer coisa de retorno. Espero ser esse tipo de pessoa. Achei que foi uma prova de caráter.


A palavra modelo pode ter algumas interpretações, e ser vista como modelo por alguém é uma delas. Sente algum tipo de responsabilidade?
Há um provérbio nativo americano, que li uma vez, que diz algo como: “Nós não herdamos a terra dos nossos pais, mas pedimo-la emprestada dos nossos filhos.” E eu achei isso muito interessante, porque quando herdas alguma coisa  toma-la como tua e fazes o que queres com isso, mas se for emprestado isso significa que não é teu e que precisa de ser partilhado. E é assim que me sinto em qualquer plataforma que estou, que carrego comigo muitas pessoas. Definitivamente sinto o peso e a responsabilidade, de outro modo não me importaria, escolheria qualquer trabalho que me desse dinheiro, e não me preocuparia com o legado que vai muito além de mim.

Numa entrevista contou como, quando era miúda, a sua mãe gritava por si quando via uma pessoa com albinismo na televisão. Sente que pode ser essa pessoa para alguém?
[Risos] Sim, acho que sim, mas espero que cheguemos a um ponto em que isso já não aconteça. Isso significava muito na altura, porque na cultura popular não havia mesmo representação. Mas hoje não é tanto assim, e sinto-me muito grata por ter contribuído para esse tipo de cultura. Muito grata mesmo.

Foi procuradora, modelo, enveredou pelo ativismo e, de repente, começou a escrever. De onde surgiram as palavras?
Nunca me considerei uma autora. Foi só no Calendário da Pirelli que percebi que poderia vir a ser uma. Eu tinha o hábito de escrever, fazer spoken word e poesia, mas nunca levei isso a sério. Mas quando me pediram para escrever um ensaio para o calendário... passei-me. Porque eu sabia o que dizer, mas não como deixar as coisas por escrito de forma a que fizessem sentido. Mas depois disso comecei realmente a dedicar-me à escrita. E comecei a compensar por tudo aquilo que não conseguia dizer. Escrever compensa tudo o que não consegues dizer no momento.

Alguma vez considerou escrever um livro?
Definitivamente consideraria. Acho que faz parte do meu chamamento. Mas como seria ainda não sei. Mas sinto que de certa forma já estou a escrever a minha história. Não sei se um dia a consolidarei num livro, mas sinto que já o comecei a escrever.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

TELONA QUENTE 283


Roberto Rillo Bíscaro

Em 1895, Leon Tolstoi publicou o longo conto Mestre e Homem. Numa Rússia profundamente desigual, onde campesinos viviam ainda em condições medievais, o autor magistralmente desenhou retrato de como a ganância pode ser fatal, além de um dos mais célebres momentos de epifania da literatura.
No dia imediatamente após o Natal, o próspero negociante Vasily Andreyevich Brekhunov ignora as festividades e o gélido inverno e cai nas perigosas estradas nevadas de um dia de tempestade. Tudo porque queria adquirir uma propriedade e aquela época do ano era ótima pra negociatas, afinal, a maioria estava desfrutando do quentinho com suas famílias. Mas, o Ebenezer Scrooge czarístico tem que lucrar. Conduzindo o trenó, o campônio Nikita, beberrão e tão acostumado a ordens, que jamais questiona o amo sobre os perigos.
Tolstoi congela os ossos do leitor com sua descrição da ventania polar da tempestade e seu narrador onisciente dá abertura pra tantas discussões, que análise do conto proporcionaria um curso. Sem contar o segmento derradeiro, de inteligência ímpar.
Transpor os devaneios e elucubrações do narrador de Tolstoi pruma narrativa imagética certamente implica perdas, mas o diretor britânico Bernard Rose saiu-se bastante bem com sua adaptação de 2012, Liquidação de Natal, disponível na Amazon Prime.
No século XXI anglofalante, Vasily é Basil, especulador imobiliário arrogante e fominha, que larga esposa e filha pra ir comprar casas leiloadas por quem não as pode pagar. Nikita é Nicky, taxista meio infantiloide, que está parando de beber e vive longe da ex-esposa, depois de ter-lhe picotado as roupas. Nem Tolstoi, nem Rose criam personagens gostáveis; não idealização duma suposta classe trabalhadora pura e elevada.
Basil e Nicky saem pelas estradas frias do Colorado, perto de Denver, região montanhosa, onde a tecnologia nem sempre consegue guiar o homem em seus caminhos. Assim, destituído de sua bengala hi-tech, que sequer é usada direito, Basil e Nicky são jogados à própria sorte.
Indicado pra quem gosta de filmes mais dialogados e com nuanças discretas, mas relevantes, daqueles típicos de mostra de cine, Liquidação de Natal é boa pedida. Melhor ainda, se pareado com a leitura do conto de Tolstoi; um complementa o outro.